UM INSTANTE DE VIDA!

Chovia lá fora. As gotas grossas de chuva escorriam pela janela e dela, mal se via um céu escuro entrecortado por raios e trovões.

Tédio. Lina perdeu a conta do número de vezes que escreveu e apagou o seu nome no vidro embaçado. Encostou a testa no vidro gelado e ficou assim, parada, por alguns bons minutos...

O gelado do vidro era uma sensação boa... Mostrava que ainda era capaz de sentir alguma coisa, embora isso estivesse longe de ser considerado sentir alguma emoção...

Afastou-se da janela e recostou-se no sofá, os olhos vazios, o corpo largado e ficou assim , por horas, sem nem perceber que o barulho da chuva foi aos poucos substituído pelo canto de um pássaro, após a estiagem...

Já era quase meio dia quando Lina, aos poucos, saiu do seu torpor...

Pela janela dava para ver crianças barulhentas voltando da escola, chapinhando na água e levando bronca de mãe...

Era mais um dia interminável que tinha pela frente...

Duas batidas na porta e entrou uma copeira sorridente, equilibrando uma bandeja, com seu almoço, que Lina nem precisava fazer muito esforço para saber o que era: um pouquinho de arroz, uma verdura super cozida, quase derretida e uma sobre-coxa de frango fervida,sem sal, nadando numa calda rala de tomate. Havia também um suco de água com melão e um potinho de gelatina, que parecia nesse momento, uma iguaria dos deuses...

Lina acenou com um sorriso agradecendo a copeira, tomou um pouco do suco , deu uma espiada no prato a sua frente, arriscou mordiscar a sobre-coxa, e com uma careta, empurrou o prato para longe. Comeu a gelatina aos poucos, como se todo o prazer da sua vida estivesse contido ali, naquele momento...

Pegou o controle remoto e começou a passar os canais na televisão aleatóriamente, sem realmente vê-los... Passou e repassou os canais incontáveis vezes, até que desligou a TV.

Olhou para o laptop na mesinha ao lado da cama e lembrou que não respondia seus e-mails há mais de duas semanas... A caixa postal devia estar abarrotada de coisas que realmente não precisavam ser lidas...

Abriu seu e-mail e não havia nada que merecesse atenção imediata... Respondeu a alguns deletou outros e desistiu de ler os restantes...

Foi então para a hora mais emocionante do seu dia: entrou num chat de poesias que descobriu ao acaso... Era um chat totalmente tomado por pessoas que entravam lá todos os dias, conversavam entre si e ignoravam os outros visitantes. Entrava lá e ficava só observando, como quem vê a vida passar pela janela.

Às vezes alguém se dirigia a ela e ela respondia, como se isso fizesse parte do seu mundo... Na maioria das vezes ficava lá, sorvendo cada palavra. Às vezes era engraçado, às vezes obsceno, às vezes mal-educado até... Mas era a sua diversão... Havia movimento, vida, mesmo que virtual e às vezes alguém citava algum poeta que calava fundo em sua alma... Ficava lá por horas a fio, até a conexão encerrar...

Normalmente todos os dias eram calmos, parados, mas nem por isso deixavam de ser cansativos...

Hoje estava sendo um dia diferente dos demais... Mas também o que importava?

Duas batidas na porta e um homem grisalho de jaleco branco com estetoscópio pendurado no pescoço entra acompanhado de duas mocinhas e uma senhora com um sorriso bonachão...

-Como vai a minha princesinha, disse a senhora sorridente, enquanto o homem de jaleco branco se aproximava e estendia-lhe a mão...

-Boa tarde, sou o Dr.Miguel. De hoje em diante iremos trabalhar juntos... Faremos uma bateria de exames de sangue, capacidade respiratória, alguns exames para ver esse coração – disse ele colocando o estetoscópio no ouvido e auscultando o peito de Lina...

-Hummm. Está parecendo uma escola de samba em início de ensaio, fora do ritmo... Está apaixonada mocinha?-disse com um sorriso nos lábios, mas com uma sombra de preocupação nos olhos que não passou despercebida a Lina. Já tinha aprendido a ouvir além das palavras...

Apertou-lhe a barriga, deu leves tapinhas no tórax, perguntando:_Dói aqui? E aqui?...

Lina estava tão cansada que respondeu apenas o suficiente para não parecer indelicada...

Só voltou a prestar atenção no que o médico falava ao final do exame quando ele se despediu e disse que as duas mocinhas que entraram com ele eram a fisioterapeuta e a nutricionista, que iriam orientá-la quanto a exercícios e alimentação...

Após incontáveis minutos de explanação a fisioterapeuta e a nutricionista se despediram sorrindo, dizendo que voltariam no dia seguinte, e Lina sorriu de volta, mal disfarçando o descontentamento...

Estava cansada, parecia que o ar não entrava nos pulmões, por mais que se esforçasse para respirar... O corpo todo doía como se tivesse levado uma surra... Seus dedos não fechavam a mão completamente e estavam levemente adormecidos nas pontas e inchados...

Recostou-se na cama, apoiada em três travesseiros e ficou quase que sentada... Só com esse movimento o coração descompassou e a respiração tornou-se um pouco mais difícil...

Nisso, mais batidas na porta... Ah, quando teria paz, pensou exasperada, mas sem forças para protestar... Era o rapaz do raio-X de tórax e a moça do laboratório para colher o sangue para os exames.

Estava cansada, de mau humor, mas mesmo assim submeteu-se aos cuidados desses novos visitantes... Em menos de 15 minutos foram embora...

Lina deu um suspiro cansado... Ainda faltava jantar e tomar banho, para considerar que o dia havia acabado...

Os dias passavam arrastados e Lina estava tão furada devido a soros e injeções, que tinha a mais um nítida impressão de que se bebesse um copo de água, ela escorreria pelos buraquinhos feitos pelas agulhas...

Hoje estava especialmente dolorida, o corpo inchado... Não conseguia nem abrir e fechar a mão que sentia dor...

Sentou-se na cama, deu um suspiro, encheu o pulmão de ar, e soltou o ar para fora com força, como se pudesse com isso afastar a dor e a mesmice que tinha se tornado esses últimos dias...

Pegou uma toalha, roupas limpas e tomou um banho demorado e revigorante...Queria estar com um ar saudável quando o médico passasse sua visita matutina...

Visita do médico, remédios, injeções, café da manhã, tudo igual...

Resolveu ver seus e-mails... Tinha um e-mail de uma pessoa que conheceu pela net. Abrir ou não? Resolveu abrir, quem sabe fizesse diferença em seu dia, afinal...

Hummm. Convite para lançamento de livro. Que legal... Era a duas quadras do hospital... Tinha que dar um jeito de ir, mesmo que isso lhe causasse problemas...

Durante a semana inteira ficou planejando como sair do hospital sem que ninguém a notasse!

Cronometrou horários de medicamentos, troca de enfermagem, já tinha um esquema armado em sua cabeça e seus dias pareceram mais felizes, passava horas planejando, tentando descobrir como seria essa pessoa que conhecia só por foto... Compraria um livro e pediria um autógrafo. Só se revelaria se fosse reconhecida, senão voltaria para o hospital, sem nada dizer...

Ah, sábado enfim... Acordou animada e planejou sua fuga... Estava muito animada e rezava para que ninguém descobrisse...

Tomou um banho às 15h. Deitou-se comportada na sua cama e ligou a TV, fingindo interesse. Às 15h:30m, hora de remédios e logo em seguida injeções...16h:15m, última injeção...

Vestiu uma calça jeans e uma blusinha colorida e maquiou-se para esconder a palidez. Olhou para os corredores e não viu ninguém. Correu para a escada de incêndios. Não poderia dar-se ao luxo de esperar o elevador... Certamente voltaria a tempo. Teria nova visita da copeira às 18h:30m com o jantar e depois enfermeiros só às 19h.

Caminhou até o Espaço Itaú e estava cansada... Chegou quase sem fôlego e foi até a recepção. Perguntou ofegante pelo lançamento do livro e foi informada que estava enganada!

Sentou-se na recepção por um momento, chateada... Logo percebeu que estava havendo uma instalação... Seus olhos criaram vida... Levantou-se rápido e teve uma leve tontura... Sentou-se por mais um instante e depois se levantou devagar...

Foi até um espaço com mini pipas no teto e alguns auto-falantes nas paredes. Algumas mini-tvs que falavam de Clarice Lispector. Colou o ouvido nos auto-falantes e foi tanta poesia a inundar a sua alma, que ficou lá deliciada, passando de um auto-falante a outro, olhando para o teto cheio de mini pipas e sorrindo diante a reação das pessoas aos auto-falantes e a uma voz que dizia em alto e bom som: FFFUUUUU... GALINHA... GALINHA...

Saiu desse espaço e se deparou com um chão de areia e telões que passavam cenas de peças teatrais e ficou lá absorvendo a sensação da areia entre as sandálias, em contraste com a tela plana com visões teatrais dramáticas, exagerando emoções inerentes aos homens...

Logo em seguida, um espaço com chão de pedregulhos, em que precisava equilibrar-se em cima do salto... Tinham folhas de caderno coladas nas paredes, pareciam rascunhos de poemas, de desenhos, ou apenas um rabisco qualquer... Deteve-se em cada um deles...

Eram sinais de intervenções humanas... Sentiu vontade de abraçar a todos que estavam por lá. Mas todos estavam, cada um alheio com seus próprios sentimentos... Arriscou apenas um sorriso para os que pelo menos por um segundo perceberam a sua presença...

Estava cansada, mas feliz... Sua alma parecia voar... Era como se um mundo novo, antes tão conhecido que se descortinava novamente diante de seus olhos, instigando e emocionando novamente o seu coração...

Sentou-se um pouco na recepção para descansar um pouco, olhou para tudo o que havia lá naquele espaço, cheio de vida, deu um suspiro feliz e levantou-se para ir embora...

Talvez tivesse sido trote de alguém, mas teve um final feliz...

Foi caminhando devagar pela Paulista, encontrou um carrinho de batatas fritas... Ah... Quanto tempo não comia essas guloseimas proibidas...

Chegou ao hospital a tempo, misturando-se a uma família barulhenta, e colocando a mão no rosto, como se estivesse tossindo... Subiu as escadas de incêndio e foi ao seu quarto rapidamente...

Colocou novamente a camisola do hospital e deitou-se, comportada e feliz...

Dali a meia hora, entrou a enfermeira para verificar os sinais vitais e ela fez uma cara preocupada... Coração arrítmico, leve febrícula e saturação de oxigênio quase no mínimo aceitável...

Recusou o jantar... Afinal, tinha comido um pacotinho de batatas fritas, inteirinho, delicioso...

Dali a pouco, mais remédios, mais injeções... Estava fraca, mas muito feliz...

Fechou os olhos e dormiu feliz, repassando os pequenos momentos de felicidade que teve...

No meio da noite, a respiração piorou... Mais injeções, soros, suporte de oxigênio...

Lina dormia feliz, sonhou voar numa daquelas pipas do teto e alcançar as estrelas e nem notou que foi transferida para a UTI.

Nem sequer ouviu os choros a sua volta nem o cheiro de flores presente quando de sua morte! Lina viveu e dormiu feliz!

lucia sukie

sukie hikari
Enviado por sukie hikari em 14/11/2009
Reeditado em 14/11/2009
Código do texto: T1922547
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