O CASO DO MANIACO DAS TESOURAS (Bressoni, investigação 7)

Para Amora estar na estação de trem naquela tarde era parte da sua rotina. Voltava do trabalho, um estúdio de tatuagem do outro lado da cidade, pegaria o filho na creche, para depois, já no início da noite, ir para o cursinho pré vestibular.

Ela entendeu que os estudos eram a forma de dar uma vida mais digna à mãe, aposentada devido às dores da fibromialgia e também para o pequeno Natanael.

A moça olhava distraidamente a Internet buscando referências para a sua arte em sites de outros tatuadores como ela. Percebeu a aproximação do trem na plataforma e deu um passo à frente. Foi nesse momento que sentiu violentamente o puxão no seu cabelo ruivo preso num rabo de cavalo. Por uma fração de segundos pensou: É ele, o maníaco! Gritou por ajuda, tentou reagir. Por susto foi empurrada da plataforma caindo sobre os trilhos. O maquinista não teve tempo de frear apesar de já estar desacelerado. Foi uma tragédia.

Naquela tarde Natanael esperou pela mãe e tendo apenas 5 aninhos entendeu que ela nunca mais viria busca-lo para irem pra casa.

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Bressoni entrava em seu carro quando recebeu o telefonema do delegado:

- Lugui, sou eu, Guerra.

O investigador sabia, claro. O identificador de chamadas deunciou o número de Otaviano Guerra e ele era o único entre os homens do DHPP com intimidade para tratá-lo pelo carinhoso apelido.

-Fala Guerra. Estou ouvindo.

- É o seguinte, não vem pra cá pra delegacia não. O sujeito no hospital só aceita falar se for com você.

- Comigo? Mas porquê?

- Não sei. Ele disse que só falaria com o policial da televisão. Sinceramente, dessa vez eu ia colocar outro dos meus homens pra conversar com ele, mas foi exigência do suspeito. Presumi que era você devido todo o destaque e reconhecimento que a imprensa deu pro seu trabalho nos casos do "Maníaco das Flores" e recentemente do "Leitor". Você sabe como as coisas funcionam...E pensando bem, é até melhor colocá-lo à frente do caso devido a sua credibilidade. Os caras do departamento de segurança pública estão no meu encalço.

- Certo senhor. Vou interrogá-lo se já está em condições de falar.

-Tem mais uma coisa. Pode não ser ele o nosso homem. Em nenhum dos casos anteriores houve tentativas ou homicídios.

Não encontramos nem tesoura e nem nenhum outro objeto cortante nas coisas dele. E a mãe já deu declarações à imprensa dizendo se tratar de uma injustiça e preconceito porque o rapaz é especial. Acho que tem algum atraso intelectual ou autismo leve**. Enfim, você sabe como as coisas funcionam. - repetiu o delegado. Vai lá

e veja o que consegue.

Bressoni confirmou e desligou. Pensou no fato que embora testemunhas tenham visto ele puxar o cabelo da moça e depois empurrá-la para a linha do trem, nenhuma das vezes anteriores o "Maníaco das Tesouras" (alcunha criada pela imprensa) agiu daquela forma, em local movimentado, no meio da tarde e provocando o homicídio. Até por isso, o caso não estava até aquele momento em suas mãos. Os indícios foram averiguados por outro investigador. De modo geral, como alardeou a imprensa , o maníaco ataca no início ou final da noite. Sempre em ruas desertas e no geral as vítimas estavam desacompanhadas. Ele apenas passava por elas, as deixava inconscientes provavelmente com inalação de clorofórmio que tem efeito semelhante ao "Boa noite, Cinderela" e estando as mulheres desacordadas ele cortava, provável com tesoura para não danificar os fios, mechas de cabelo e não faziam nenhum outro tipo de violência como roubos ou violação sexual. Na prática era um ladrão de cabelos que aterrorizava apenas mulheres. Se esse rapaz que passou dias no hospital depois de ser linchado por populares era mesmo o maníaco, dessa vez ele mudou seu modo de agir. Ou modus operandi como diz o jargão policial para esses casos.

O investigador chegou no hospital e ainda na recepção foi interpelado pela mãe do acusado.

Eu o proíbo de chegar perto do meu filho. Está me entendendo? Ele é um adulto mas tem a mentalidade de uma criança. Ele é doente e não fez nada. Só fala com a presença de um advogado. Está me entendendo? Não me interessa se ele quer falar com você policial famoso ou com o papa. Ele não sabe o que diz. Eu sou a mãe dele e o proíbo.

Bressoni podia argumentar que a conversa era ainda informal. Que um inquérito seria instaurado pelo Ministério Público, com uma denuncia formal e que o "não fez nada" era uma negativa não plausivel diante dos fatos, pois havia dezenas de testemunhas e uma vítima fatal. Para evitar tumultos no hospital, esperou o tal advogado chegar e conversar com seu cliente. Por algum motivo que Bressoni não sabia, o rapaz contrariou o desejo da mãe e do advogado e pediu para conversar sozinho com o agente do DHPP.

Bressoni entrou no quarto sabendo de antemão que devido ao linchamento o rapaz teve um braço, a mão e uma costela quebrados, além é claro de inúmeros hematomas. Era a justiça com as próprias mãos feita por pessoas ditas civilizadas, mas que no calor das emoções agiam como selvagens dando vazão para os instintos mais primitivos.

- Boa tarde, meu nome é Luiz Guilherme Bressoni e sou investigador do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa. Soube que você só aceitaria conversar comigo.

- Sim, você é polícia do bem. Ajudou aquela moça da faculdade e descobriu quem matou a gorda do lago*. Eu vi você na TV - respondeu o rapaz de modo meio infantilizado e com nítido desconforto, certamente devido aos traumas pelo corpo.

Então é por isso que queria que fosse eu a interrogá-lo senhor, Jaelsson?

- Junior. Me chame de Junior.

O policiai acatou. Bom, tenho algumas perguntas a fazer: Você sabe o motivo pelo qual está sendo acusado?

- A menina de cabelo de fogo caiu na estação. Falaram que eu empurrei.

- Sim, prosseguiu Bressoni. Você também é suspeito de atacar 8 mulheres e, nesse caso, de cortar o cabelo delas enquanto estavam inconscientes. Nenhuma das vítimas até o momento o reconheceu, mas dizem não terem visto o rosto de quem fez isso a elas.

- Você gosta de cabelos, senhor policial?

- Como?

- Você sabia que o maior cabelo do mundo tem 3 metros?

- Não senhor Junior, não sabia. Pode responder umas perguntas?

- Sabia que os egípcios já pintavam o cabelo de vermelho em 1500 a.c?

Bressoni ignorou. Quis retomar o controle da conversa e não tinha interesse em saber de um manual de cabeleireiros.

-Soube que você prestava serviços num hospital infantil de câncer e que no horário dos ataques a algumas das vítimas estava trabalhando. Você confirma? O que faz lá?

Jaelsson preferiu não responder. Parecia ter um especial interesse pelo tema cabelos.

-Senhor policial, o senhor sabia que 70 % dos brasileiros tem cabelo encaracolado e que não existem índios com cabelos cacheados?

Claro, que Bresoni não sabia. Aquela conversa sobre cabelos precisava ter um fim.

-Senhor Jaelsson...

-Eu sou o Júnior.

-Senhor Jaelsson Junior, quero que responda minhas perguntas. Há testemunhas que viram o senhor cometer um crime na estação. Precisamos esclarecer alguns fatos.

A menina se assustou. Eu não quis empurrar ela não. Ela gritou comigo. Ela tem (sic) cabelo bonito e cor de fogo. Um montão de gente gritou comigo e bateu em mim.

Nisso, o rapaz começou a chorar relembrando o trauma. Bressoni pensou que talvez a mãe dele tivesse mesmo com a razão, pois o rapaz parecia uma criança assustada e não um homem de 23 anos acusado de um crime e suspeito de outros.

Estava também ficando claro para Lugui Bressoni que aquele homem meio infantilizado e que parecia ser uma enciclopédia sobre cabelos, não poderia ser o Maníaco das Tesouras. Talvez uma coincidência esse interesse por cabelos. Ele não teria a astúcia de premeditar um ataque furtivo às vítimas. Ele estava muito mais próximo do último ataque, o que vitimou Amora, sem planejamento, em local público, sem ter como fugir e no meio da tarde. Talvez estivesse encantado pelos " cabelos cor de fogo" como uma criança se encantaria por um balão colorido. Bressoni tentou outra técnica Entrou no jogo de respostas evasivas sobre cabelos. Perguntou:

- Você gosta de cabelos vermelhos?

Dessa vez Jaelsson olhou pro investigador. Durante toda a conversa manteve quase nenhum contato visual.

-Gosto, igual aos da Rita Lee, mas mamãe diz que eles valem pouco. Loiro vale mais.

-Sua mãe gosta de loiro, então? Por isso você quis pegar o cabelo da moça na estação? Pra dar pra sua mãe e ver se ela gosta?

O hospitalizado pareceu ficar desconfortável e Bressoni intuiu que esse desconforto já não tinha a ver com as dores pelo corpo, mas por algo que foi dito. O jovem não respondeu e voltou a seu monólogo capilar:

Você sabia que cabelos crescem um centímetro por mês? As crianças do hospital sabem porque eu falei pra alegrar elas.

-Jaelsson eu preciso que responda minhas perguntas. Você me chamou aqui e preciso que confie em mim para eu poder ajudá-lo.

-Você sabia que os índios não possuem pelos no corpo?

-Jaelsson..Porque você tentou pegar o cabelo da moça na estação?

- É Junior. Você sabia que o ciclo de vida de um cabelo é de 2 a 7 anos? - o rapaz falou já um pouco agitado.

Bressoni contornou com uma nova pergunta. Porque sua mãe diz que loiro vale mais?

Novamente o homem olhou para o investigador. Era um contato visual breve que estabelecia uma conexão mínima. Estava estabelecido que se o investigador quisesse qualquer resposta seria nos termos estabelecidos pelo interrogado, ou seja, falando sobre cabelos.

-Ela tem deles em casa, mas eu não posso mexer.

O investigador achou a informação reveladora. Quis saber o porquê mas não obteve mais nenhuma resposta. Jaelsson Junior disse que estava cansado e que não queria mais conversar.

Bressoni não pode insistir. Saiu do quarto do hospital. No corredor ele foi novamente interceptado por Irina, a nervosa mãe do rapaz:

- Você não tinha o direito de conversar com ele. Não percebe que meu filho é retardado e não sabe o que faz e o que diz? Vou te denunciar por abuso de autoridade.

Bressoni ignorou. Estava pensando em outra coisa, mas não podia perguntar para aquela mulher. Era evidente que não estava disposta a colaborar. Três perguntas passavam pela mente do policial: Primeiro: Qual a relação do interesse do rapaz por cabelos com aquela mãe? Segundo: Porque ela disse pro filho que cabelo loiro vale mais? E principalmente porque tinha cabelos loiros em casa?

Ao invés de questionar a mulher, pediu uma ordem de busca e apreensão pra a casa do suspeito. Tinha uma ideia e apostou que poderia ser um caminho para a investigação. Foi um acerto…

Na casa, dezenas de mechas de cabelo catalogadas e precificadas, algumas custavam mais de mil reais. Sem ter como explicar aquilo coube a mulher e ao filho mais velho Jadersson assumirem os crimes. Ele, Jadersson, confessou ser o Maníaco das Tesouras. Depois ficou comprovado que trabalhava como caminhoneiro e que já tinha atacado moças em outras cidades e estados em suas viagens. Era evidente devido a quantidade de cabelos encontrados na casa. Sempre do mesmo modo atacava as mulheres num esquema que parecia gerar lucros exorbitantes pois ofereciam um produto de qualidade, sem custos de produção, com diversas ofertas numa quantidade quase infinita e com uma demanda crescente de clientes, em geral salões de beleza que usavam os fios humanos na confecção de tranças ou perucas. A mãe, dona Irina, era responsável por preparar as mechas e entrar em contato com os compradores dos fios no interior e na capital.

Soube-se depois que o advogado de Irina tentou amenizar a sentença de sua cliente, alegando alguma flexivel moralidade aos crimes e dizendo que parte das mechas eram usadas na confecao de perucas que seriam doadas a hospitais do cancer e a mulheres escalpeladas. Era um modo vexatório de atenuante fazendo supor que os fins justificam os meios e que as açoes dos bandidos reparavam parte das injustiças do mundo, pois alguns tem tantos e outros não tem nada. Claro, era um blefe. Se de fato tais doacões ocorreram não ficou comprovado. Foram ambos, Irina e Jadersson indiciados por associação criminosa e o maníaco também pela violência inflingida às vítimas.

Lugui Bressoni entendeu que Jaelsson quando em situações estressoras de insegurança e medo recorria a seu interesse por cabelos por saber que o assunto interessava sua mãe e dessa forma tinha a atenção materna. Por ele não ter maturidade cognitiva ou emocional generalizou esse comportamento para as demais pessoas. Sua conversa aparentemente sem sentido sobre cabelos era na verdade um pedido de socorro e ele a seu modo ajudou nas investigações denunciando a mãe para o policial bom da TV.

Junior foi recolhido ao manicômio judiciário à espera de uma sentença, mas certamente teria sua pena reduzida pela morte de Amora por ser um terrível acidente, pois não teve intenção de matá-la quando a empurrou. Era como uma criança assustada. Talvez até mesmo fosse considerado inimputável pelo crime, não tendo maturidade para discernir sobre as consequências das próprias ações. Certamente não era a justiça que Amora e seus familiares mereciam ou esperavam, mas ao menos a sua morte ajudou a solucionar uma série de outros crimes.

Caso encerrado. (FIM)

* referência as investigações "A garota dos trilhos" e "O Leitor" da série Bressoni, presentes aqui no RL.

* *Essa é simplesmente uma obra de ficção baseada na imaginação do autor. Nao é intenção formentar preconceitos com pessoas com transtorno do espectro autista, pessoas com transtornos globais de desenvolvimento ou com qualquer neurodivergencia.