Elementar!
Noite. No apartamento da Baker Street, 221B, o Dr. Watson irrompe na sala de estar, onde já está Sherlock Holmes ao violino.
- Holmes! Holmes! Você viu meus óculos de leitura?
Sherlock Holmes interrompeu seu exercício e encarou o parceiro de modo curioso.
- Não estão no seu rosto, obviamente, então deve tê-los realmente perdido... já os procurou na Sra. Hudson, onde disse que iria?
- Sim, já... eu os levei justamente porque ia conferir o recibo do aluguel. Imaginei que os tivesse guardado no bolso do casaco após sair de lá, mas não estão... procurei em todos os bolsos e nada!
- Certamente que comigo é que não estão. Já olhou nos lugares habituais?
- Sim, todos... nada! É como se houvessem evaporado.
- E o mais provável é que isso tenha ocorrido no apartamento da Sra. Hudson.
- Sim...
Holmes pousou arco e violino na mesa redonda ao lado da janela. Pôs a mão no queixo, expressão pensativa.
- Você não costuma ir habitualmente ao apartamento da Sra. Hudson, correto?
Watson ergueu os sobrolhos.
- Apenas quando tenho algum assunto doméstico a tratar, Holmes.
- E em alguma destas vezes ela lhe falou sobre... superstições escocesas?
- Superstições... bem, sim. A Sra. Hudson fez referência certa vez a algumas crenças do povo simples da Escócia... nas quais, provavelmente, ela acredita.
Holmes franziu a testa, mão no queixo.
- Você fez algum comentário desairoso sobre as crenças da Sra. Hudson?
Watson pareceu ficar sem jeito.
- Bem... confesso que ri e chamei de bobagem. Um homem de ciência não pode acreditar em contos de fada. E não é você mesmo quem diz que "quando se elimina o impossível, o que sobra, por mais incrível que pareça, só pode ser a verdade"?
- Eu mesmo - retrucou Holmes. - Não temos necessidade de invocar fantasmas para resolver mistérios...
A sombra de um sorriso passou-lhe pelo rosto.
- E no entanto...
- E no entanto?
- Temos creme em casa, Watson? - Perguntou de modo despreocupado.
Foi a vez de Watson franzir a testa.
- Creme, Holmes?
- Sim, creme de leite.
- Claro... temos... mas você quer tomar chá agora?
- Não é para o chá, Watson. Quero que ponha um pouco de creme num pires...
- E depois?
- Desça até a Sra. Hudson, peça-lhe que o acompanhe, e deixe o pires sobre aquele tamborete que ela mantém perto do fogão, na cozinha.
- Ela tem um tamborete perto do fogão? - Indagou Watson intrigado.
- Se algo tão grande quanto um tamborete lhe passou desapercebido, Watson, não me admira que não saiba onde estão os seus óculos! - Ralhou Holmes.
- Mas... não estou entendendo o que isso tem a ver...
- Watson! Faça! - Exclamou em tom imperativo Holmes.
Resignado, Watson foi procurar um pires e a garrafa de creme de leite.
* * *
Menos de dez minutos depois, Watson voltou para o apartamento que dividia com Holmes, os óculos de leitura no rosto.
- Onde estavam? - Indagou Holmes serenamente.
- É inacreditável... no chão, do lado de fora da porta de entrada do apartamento da Sra. Hudson.
- E lá estavam quando você voltava, não foi?
- Bem... sim. Mas como sabia?
- Qual foi a reação da Sra. Hudson ao vê-lo com o pires na mão?
- Bem, ela... sorriu. E o sorriso aumentou quando disse que iria colocá-lo sobre o tamborete da cozinha.
- E ela o acompanhou?
- Não.
- Perfeito - respondeu Holmes, pegando arco e violino.
- Mas... não vai me explicar o que houve? - Indagou Watson decepcionado.
Holmes tirou uma nota do violino e depois fitou o amigo com ar divertido.
- Watson... jamais ria das crenças de uma mulher. Isso traz... má sorte!
E, com um sorriso no rosto, começou a tocar Mendelssohn, "Canção sem palavras" nº 1.
- [02-10-2017]