Garotos Perdidos

Garotos Perdidos/Conto/Perugia

Havia dias que estava na cola desse criminoso. Não, eu simplesmente não posso chama-lo assim, gente da laia dele não faz esse tipo de coisa. Uma aberração, essa era a palavra, a única palavra que estava minimamente próxima de descreve-lo. Não tinha interesse em captura-lo, não mesmo, iria por uma bala bem no meio dos olhos daquele maldito e tremia só de pensar a respeito.

Começou há um ano, talvez antes disso. A primeira a sumir foi uma garotinha, pobre criança, deixou a polícia louca. Um mês depois foi a vez de um garoto, algo não cheirava bem. Então veio o mês seguinte e mais uma garota desapareceu. Foi o suficiente, a cidade estava histérica e a polícia não sabia o que fazer.

Conforme os meses iam passando uma criança sempre sumia. Vez menina, vez menino. Assim, como num passe de mágica, puff, hora estava ali, hora não. E todos os cuidados do mundo de nada adiantavam, até mesmo crianças trancadas em seus quartos simplesmente desapareciam. Não demorou e as pessoas começaram a apontar os culpados, um assassino em série, uma bruxa ou até mesmo o próprio Satã, ninguém estava fora do radar.

Um dia uma família partiu sem olhar pra trás. Noutro já eram duas. Uma semana depois uma penca delas. A polícia ainda não sabia de nada.

Um ano se passou e a cidade já estava quase vazia. Os únicos que restavam eram os pais que passavam os dias vagando como zumbis na esperança de reencontrarem seus filhos. Crianças? Se ainda existissem poderiam ser facilmente contadas nos dedos. Havia uma espécie de má sorte pairando sobre a cidade, má sorte ou quem sabe algo muito pior.

Em toda a história do país nunca sequer aconteceu algo parecido e ninguém sabia ao certo como proceder. Não demorou muito para a cidade estar cheia de detetives, curiosos ou na maior parte dos casos um bando de desocupados sem ter muito o que fazer. Todos atraídos por um único objetivo, encontrar as crianças, vivas ou mortas, e descobrir o desgraçado por trás dessa merda toda. É lógico que se você pergunta-se a qualquer um desses idiotas ele provavelmente diria se tratar de um nobre cavalheiro em busca de justiça, mas cá entre nós, onde está a justiça quando o prefeito, um porco careca e atarracado prometera uma montanha de dinheiro em rede nacional para o nobre cidadão que coloca-se um fim nesse maldito mistério. Não há bondade no ser humano, apenas ganância desenfreada consumindo esses putos até as entranhas do cu.

Havia uns bons anos que havia saído da polícia, cansado demais pra bancar o durão. Aposentado, vivia uma vida tediosa demais até mesmo para um velhinho nos últimos anos de vida e ainda nem havia chegado aos sessenta. Bebia demais, pensava demais, suicídio na maior parte do tempo, covarde demais para puxar o gatilho.

Um dia enquanto assistia TV e enchia a cara de cerveja vagabunda me deparo com o tal prefeito, prometendo, salivando, gritando por justiça quando na verdade buscava apenas um modo de se reeleger. Precisava fazer algo da vida ou iria acabar puxando o maldito gatilho. Uma semana depois aqui estava, nessa cidadezinha situada no quinto dos infernos procurando por uma forma de puxar o gatilho, de uma maneira ou de outra.

Era um fim de tarde quente de dezembro e o sol já havia quase se posto. Estava em um bar bebendo e aproveitando para coletar informações com os "investigadores" locais. enquanto tomava um drinque ou outro no balcão prestava atenção numa mesa em especial onde um bando de espertalhões conversavam em um tom bem acima do normal, certamente haviam passado da conta.

- Tô te dizendo cara, as crianças somem assim do nada, igualzinho fumaça - Berrou um de camisa xadrez.

- Para de falar merda companheiro, ninguém vira fumaça - Vociferou outro.

- Eu juro cara, conversei com um monte de gente e ninguém sabe como elas somem, uma garotinha me jurou de pés juntos que a amiga virou fumaça, assim, puff, sumiu na frente dos olhos, escafedeu-se, fumaça entende?

- E você acredita em garotinhas Lu? Tome mais um trago meu chapa que vai fazer bem pra essa sua cabeça desmiolada - resmungou um gordo que mal cabia na cadeira enchendo novamente o copo do amigo.

- É talvez você esteja certo amigo, crianças não viram fumaça - disse já se conformando com a discussão perdida.

Puta merda de onde saem tantos idiotas assim?

Estava quente, um calor infernal e o suor empapava minha camisa amarrotada. Tocava uma música calma na jukebox do bar, provavelmente um blues e isso era bom. Já estava de saco cheio de ficar ali escutando aquele monte de lorotas. Pedi a conta ao garçom, um sujeito de cara deformada e enormes suíças negras. Paguei o que lhe devia e me levantei já meio tonto para retornar ao hotel quando um rapaz magricela irrompe pelo salão todo arranhado e sujo de terra.

- Encontraram! - disse por entre os dentes - encontraram uma das crianças, terrível, absolutamente terrível, na floresta, Deus que merda!

Não sei ao certo o que aconteceu ou como aconteceu. Uma hora depois estava no meio da mata cerrada, todo sujo e arranhado com uma lanterna em mãos. Eu e mais uma centena de homens, iluminando a noite, vaga-lumes em tamanho família.

A criança se encontrava em um local de difícil acesso, descoberta ao acaso por algum caçador. Quando cheguei ao local um punhado de homens já se encontrava por ali, com suas lanternas e suas armas em punho.

Me aproximei empurrando um monte deles pra fora do meu caminho e o que vi não pode ser descrito em palavras.

Ali em minha frente jazia nua uma garota pregada em um velho jacarandá pelos braços. As órbitas vazias e a face contorcida como se estivesse clamando por ajuda. Em seu peito um ouroboros gravado a ferro. Causa provável da morte, um corte profundo na garganta.

Em todos os meus anos na polícia já havia presenciado uma porrada de crimes pra lá de cruéis, mas isso era demais. Me afastei um pouco e vomitei, ali mesmo, sem o menor pudor, um monte de gente já havia feito o mesmo. Horas depois estava no meu hotel barato, na minha cama barata, sem conseguir dormir, apenas pensando. Tremia um pouco e não sabia se era resultado da bebida ou da cena macabra. Passei a maior parte da noite em claro, a insônia era uma companheira de longa data.

Pela manhã levantei cedo de uma noite inquieta, tomei café e me preparei para minha jornada pessoal. Saí do hotel com uma mochila nas costas e dentro dela nada além de água, suprimentos, pilhas, uma lanterna, celular, um mapa, uma garrafa de uísque para eventuais emergências e meu inseparável revólver, um velho calibre trinta e oito. Iria vasculhar aquela floresta de pernas pro ar se fosse preciso, mas iria por um fim nessa merda toda.

Antes de me embrenhar na mata fechada resolvi passar na delegacia para recolher mais algumas informações. Um rapaz de cabeça raspada e cara de poucos amigos me barrou logo na entrada.

- Amigo, creio que você não pode passar daqui.

- Vim falar com quem está no comando.

- Ele não está.

- Preciso de algumas informações.

- Todo mundo precisa companheiro. As pessoas vem aqui o tempo todo nos encher o saco e desde ontem a noite parece que cada idiota do país tem vindo a essa delegacia só pra testar minha paciência. Olha, porque não vai dar uma voltinha, tomar um ar, caminhar, você sabe, aqui não é lugar para amadores, deixe os profissionais de verdade trabalharem.

Lancei-lhe um olhar cheio de cólera e desprezo, mas saí, eles não poderiam me ajudar.

Atente-se aos fatos, treze crianças haviam desaparecido no último ano, sete meninas e seis meninos, todos com a exata idade de doze anos ou próximo disso. Uma garota foi encontrada morta ontem a noite na floresta, era tudo que precisava saber.

Passei o restante do dia subindo e descendo por aquela maldita floresta, vasculhando cada trilha, cada canto, cada pedaço de chão. Nada, no fim não encontrei nada. Quando a noite caiu me deitei em baixo de um pau-brasil e fiquei ali, contemplando o céu estrelado de dezembro e tomando um trago ou outro de minha garrafa de uísque falsificado. Dormir em uma floresta que poderia estar cheia de pequenos cadáveres não era de todo ruim, o que incomodava mesmo eram os mosquitos.

Acordei pela manhã de ressaca. Comi uma porcaria qualquer e levantei acampamento. Iria vagar de novo sem rumo por aquele lugar esquecido por Deus.

Perambulei por horas e horas a fio. Cansado resolvi dar uma pausa, meu corpo já não tinha tanto vigor assim. Sentei-me sobre uma pedra achatada. Abri o cantil e tomei um longo gole de água. Já eram meio dia e os pássaros faziam uma tremenda algazarra. Deitei sobre a pedra, a fadiga mitigava o espírito. Queria dormir, o que era estranho já que nunca dormia direito. Estava cansado, sim cansado de tudo e sabia que esse cansaço nunca mais iria passar. Virei de lado, um cochilo não faria mal. Acordei algum tempo depois, ainda estava cansado. Foquei os olhos doloridos na pedra em que estava deitado.

- Mas que merda é essa?

Uma letra, sim havia uma letra na pedra, quanto a isso não havia dúvidas. Levantei de sobressalto. retirei as folhas secas de cima daquele objeto esquisito. Não era uma pedra, era um túmulo. Mas, ali no meio do nada? Analisei com cuidado aquele monumento fúnebre, estava apagado demais pelo tempo para que qualquer coisa pudesse ser lida. Pulei sobre ela e obtive um estalo como resposta. O coração disparou. Resolvi forçar a placa para o lado e mesma cedeu com relativa facilidade fazendo com que eu caísse junto com a mesma em meio a folhagem. Levantei. Suava frio. Olhei para dentro daquele buraco escuro esperando encontrar uma ossada ou algo do tipo. Estava tarde e a floresta misteriosamente silenciosa. Acendi a lanterna e mirei bem no fundo daquele breu.

- Santo Deus!

Uma escada, uma maldita escada, descendo para o quinto dos infernos. Onde ela iria dar? Peguei minha mochila e a garrafa de uísque. Dei um bom trago e a coloquei de volta na bolsa. Iria Seguir por aquela escada, ainda que ela desemboca-se no colo do próprio Satã. Lanterna em mãos me atirei ao desconhecido. primeiro descendo, depois seguindo em linha reta. Cada degrau coberto por musgo e umidade. Corredores claustrofóbicos a me sufocar. Foi um bom tempo se arrastando pelo centro da terra, horas talvez. Volta e meia parava para dar um trago. Pensei que nunca iria acabar, pensei que aquilo não daria em lugar algum. Quem foi o sacana que havia feito essa porra toda? Precisava encontrar as crianças, e era só isso e o desejo de meter uma bala no rabo do monstro por trás disso tudo que me fazia prosseguir.

Um tempo depois voltei a subir. Uma luz fraca apontou no fim do túnel. Comecei a dar passos cada vez mais rápidos. O cansaço me consumia. Saquei o revólver. Coração descontrolado. Dei o último passo que me tiraria do inferno e me jogaria de novo no domínio dos vivos. Me atirei para fora do buraco em um ato de desespero.Um clarão ofuscou os meus olhos. Era noite alta, de onde viria tanta luz?

Esfreguei os olhos. doíam e queimavam. Consegui ajustar um pouco a visão algum tempo depois. Tochas, centenas delas iluminando a noite. Um vulto branco e doce sorria com delicadeza para mim. Um anjo?

- Olá Daniel! - disse a figura feminina a sorrir.

- Olá?

- Bem vindo ao culto.

- Que culto? - Consegui dizer finalmente recuperando minha visão.

- O nosso culto querido.

Olhei ao redor assustado. A figura sorria do alto de seu vestido imaculado e madeixas douradas. Pessoas, elas estavam por todos os lados, centenas delas, ali naquela clareira sabe-se onde. Todos vestidos de branco e segurando suas tochas flamejantes. Olhos impenetráveis a me fitar, cada par deles.

Ali, em torno de um velho jacarandá, doze crianças, todas pregadas de braços abertos. Um ouroboros gravado a ferro no peito de cada uma. Órbitas vazias olhando para o nada. Todas mortas por um corte fatal. Olhei novamente para a mulher de branco, eu a conhecia de algum lugar. Sim a conhecia, era a mulher do prefeito. Apontei o revólver trêmulo para ela, mirando no meio do peito.

- MAS QUE PORRA É ESSA?

Estava sonhando, não havia explicação. Talvez tivesse bebido demais. Era possível.

- Há muito tempo havia um Deus nessa terra - ouvi uma voz rouca falar atrás de mim, era o prefeito - Um Deus poderoso e por vezes cruel. Agraciava os seus seguidores com fertilidade e boas colheitas, riquezas e quem sabe até imortalidade. Mas isso tudo tinha um preço. Doze crianças a cada doze anos. Uma divindade gulosa diga-se de passagem.

- MERDA! MERDA! MERDA! - Gritei enlouquecido prestes a apertar o gatilho, levaria aquela vadia comigo para o inferno e quem sabe o porco roliço - VOCÊS SÃO DOENTES, DOENTES, É ISSO QUE SÃO!

- Adeus Daniel, você viu demais! - Grunhiu o prefeito sacando a pistola e me acertando um tiro na nuca. Sangue e miolos espirrando sobre o imaculado vestido de sua esposa.

Era natal e Deus estava faminto.