ANJO DA GUARDA

O trânsito no centro da cidade do Rio de Janeiro estava congestionado na parte da manhã. Jorge seguia de automóvel para o local de trabalho. O rádio noticiava uma manifestação popular contra a legalização do aborto no Brasil. Desistindo de enfrentar o engarrafamento, decidiu estacionar o veículo na primeira vaga que avistasse pela frente. Encontrou a vaga que procurava. Depois desse sufoco, percorreu a pé três quarteirões até chegar ao prédio onde mantinha um escritório de contabilidade. Pegou o elevador e apertou o botão do oitavo andar. Estava sem secretária havia dois meses. Por isso, assim que chegou ao escritório, tratou logo de preparar o café que serviria aos clientes. O trabalho transcorreu normalmente durante todo o dia. Por volta das dezoito horas, quando arrumava a mesa para voltar para casa, a campainha tocou. Achou isso estranho. Não havia nenhum cliente agendado para aquele horário. Jorge abriu a porta. Era uma adolescente pedindo emprego. Antes de convidá-la a entrar, quis saber dela quem a indicara para a vaga de secretária. A moça alegou que um dos porteiros daquele prédio residia na mesma rua que ela. Eram vizinhos. Sabendo que procurava emprego, esse porteiro forneceu-lhe o endereço comercial de Jorge, que havia comentado com ele sobre a necessidade urgente que tinha de uma secretária para recepcionar os clientes. Depois disso, Jorge convidou-a a entrar. A candidata chamava-se Solange. Tinha dezoito anos de idade. Órfã de pai, morava com a mãe. Era filha única. Abandonara o ensino médio para trabalhar, pois a renda mensal da mãe não era suficiente para cobrir todas as despesas domésticas, incluindo o aluguel da casa. Recebia uma parca pensão da Seguridade Social. O último emprego de Solange fora de secretária de um consultório dentário, portanto possuía experiência profissional para o desempenho da função. Após a entrevista, que não durou mais que meia hora, Jorge contratou-a para ocupar a vaga com início imediato. A nova secretária começaria a trabalhar no dia seguinte, das oito às dezoito horas, com intervalo de duas horas para o almoço. Era uma quinta-feira.

Na sexta-feira, Solange chegou ao escritório com quinze minutos de antecedência. Não se descuidava da pontualidade. Jorge deixara com ela uma cópia da chave. Preparou o café, abriu a janela e sentou-se à mesa da recepção. Jorge atrasou-se nesse dia por conta de uma consulta médica. Tratava-se com um pneumologista. Por orientação médica, teria de abster-se do tabagismo, um vício que o acompanhava desde a adolescência. Chegando ao escritório, como era de costume, bebeu uma xícara de café e acendeu um cigarro. Na primeira tragada sentiu-se mal. Tossiu muito e teve ânsia de vômito. Apagou o cigarro no cinzeiro com raiva. Em pensamento, prometeu a si mesmo que abandonaria para sempre o hábito nocivo de fumar. Não queria morrer por causa do enfisema pulmonar. Fez algumas ligações telefônicas e foi para casa. Antes disso, porém, pediu a Solange que recebesse a documentação dos clientes e a colocasse na prateleira superior do armário da sala dele. Como era véspera de fim de semana, faria a escrituração contábil na segunda-feira. Solange fez o que lhe fora solicitado. No final da tarde, chegou ao escritório um cliente de nome Afonso, dono de uma lanchonete. Vendo que Solange estava de saída, ofereceu-se para levá-la em casa no seu automóvel. Solange aceitou a cortesia.

Chegando ao escritório na segunda-feira, Solange preparou o café, abriu a janela e sentou-se para descansar. Reparou que, em cima do armário da recepção, havia uma imagem em cera de São Miguel Arcanjo. Na sexta-feira, a caminho do escritório, Jorge a tinha comprado numa loja de artigos religiosos. Passados alguns minutos, Jorge entrou no escritório saudando-a com um bom-dia. Curiosa, Solange perguntou-lhe se acreditava em anjos da guarda. Jorge respondeu-lhe que sim. Segundo ele, que era católico, Deus não desaprova as imagens de santos, mas, sim, as imagens de ídolos, que são os falsos deuses. Aproveitando a pergunta, Jorge contou-lhe a história de um agente policial que salvara a vida de uma mulher que se encontrava em apuros. O nome dele era Ariel. Por coincidência, o pai o registrou com o nome de um anjo da guarda. De fato, Ariel fez-se de anjo da guarda de Rosa Maria, a mulher que ajudara a escapar de uma tragédia em decorrência de problemas de relacionamento afetivo.

Interrompeu a narrativa para beber uma xícara de café. Em seguida, prosseguiu comentando que esse policial ganhara um livro de presente de um colega de trabalho. O livro explanava sobre a premonição, isto é, a capacidade sobrenatural de prever o futuro. Jorge disse-lhe que, de tudo o que Ariel lera no livro, o mais surpreendente foi o caso do ex-presidente norte-americano Abraham Lincoln, que confidenciou à esposa que seria assassinado em breve. Pois bem. O homicídio ocorreu três dias depois, enquanto assistia a uma peça teatral. Na noite em que terminou a leitura, Ariel teve um sono agitado, acordando várias vezes durante a noite assustado com o que sonhava. Pela manhã, despertou antes do horário habitual. Enquanto escovava os dentes, pensava no sonho que tivera. Lembrou-se de que se encontrava na sala de um apartamento, onde presenciava a discussão calorosa de um casal. Num dado momento, o marido sacou o revólver e apontou-o para a esposa, mas não vinha à memória o desfecho desse episódio. O sonho era interrompido nesse instante, quando retornava ao estado de vigília. Ariel foi para o distrito policial ainda pensativo. Chegando lá, contou o sonho ao colega que lhe dera o livro de presente. Na conversa que tiveram, esse colega orientou-o no sentido de deixar o sonho seguir o seu curso normal. Poderia ser uma advertência antecipada de uma tragédia. Ao retornar do serviço, pegou o livro na estante e leu novamente o capítulo sobre o assassinato do ex-presidente estadunidense. O tempo passou, mas não dissipou o pressentimento. Fazia duas semanas que Ariel não tinha o tal sonho. Numa tarde de domingo, contudo, foi acometido por um sono intenso que o fez adormecer. Dormiu debruçado sobre a escrivaninha, enquanto lia o último capítulo do livro. Sonhou outra vez com a briga do casal. Nesse sonho, Ariel foi arrebatado para a portaria do prédio, onde foi informado pelo porteiro sobre o local do crime. O casal residia numa cidade que divisava com a cidade onde Ariel morava. Além disso, soube também que o homicídio poderia ocorrer até o final daquela semana. Acordou atônito, ligou para o colega e argumentou que precisava tomar alguma providência, pois suspeitava de que o sonho pudesse ser realmente um aviso sobre um crime passional que estava na iminência de ser consumado. Solange não cabia em si de tanta curiosidade. Parecia uma esquimó do Alaska dentro de um "shopping center" no centro de Londres. A perplexidade vicejava em seus olhos. Hesitava entre acreditar ou não acreditar, mas ouvia atentamente a narrativa. Por um instante, Jorge ficou pensativo, tentando se lembrar dos pormenores da história. Coçou a cabeça olhando para o chão. Ergueu a cabeça, olhou para a ouvinte curiosa e disse-lhe que numa noite de quarta-feira Ariel conseguiu a informação de que necessitava, mas esta não lhe foi revelada em sonho. A revelação ocorreu em estado de vigília. Nessa noite, quando se preparava para dormir, ouviu um barulho na cozinha do apartamento, como se alguém tivesse chutado a lixeira. Rapidamente correu para a cozinha. Para a sua surpresa, deparou-se com uma mulher, a mesma que aparecia nos sonhos discutindo com o marido. Apresentou-se com o nome de Rosa Maria. Ariel esfregou os olhos como se não querendo acreditar na visão. Com a voz embargada, indagou a mulher sobre quando ocorreria o crime. Ela esclareceu que poderia ocorrer às vinte horas do dia seguinte, acrescentando que estava receosa de ser assassinada pelo marido. Em seguida, a aparição, ou seja lá o que tenha sido, sumiu do seu campo visual. Depois do susto, Ariel foi ao banheiro trocar de cueca. Quando caiu a noite, apesar da fadiga, não conseguiu dormir. A ansiedade espantara o sono. Passou a noite em claro, assistindo à televisão. Na parte da manhã, fez uma ligação telefônica para o seu chefe imediato para acertar a concessão de uma licença para tratar de interesses particulares. Precisava de disponibilidade de tempo para elucidar o caso. Depois do telefonema, fez um lanche, regulou o despertador e jogou-se na cama. Estava exausto. Precisava dormir. Na parte da tarde, levantou-se ainda sonolento e foi tomar banho. Quando entrou no banheiro, notou que no chão, a um palmo do boxe, havia um cocô. Deu um pulo para trás. Quem teria feito aquilo? Em seguida, com um pedaço de papel higiênico, pegou o cocô, jogou-o no vaso sanitário e acionou a descarga. Ariel era sonâmbulo, mas nunca fizera isso antes. Tomar banho e vestir-se foi uma ocupação que não consumiu muito tempo. Não havia tempo a perder. Aquele instante exigia pontualidade. A pressa era tanta que nem chegou a reparar no cheiro do cocô. Depois de alguns minutos, o relógio de parede marcava dezoito horas. Como calculava que a viagem de automóvel duraria uma hora, esperava chegar ao local do crime com uma hora de antecedência. Na esperança de que tudo corresse bem, desceu até a garagem, entrou no automóvel, ligou o motor e seguiu viagem.

Estacionou o automóvel em frente ao prédio. Na portaria, identificou-se para o porteiro como policial e comunicou-lhe que estava procedendo a uma investigação. Sentou-se no sofá que ladeava a porta do elevador social. Manteve-se em silêncio, enquanto aguardava o momento oportuno para subir até o apartamento. Faltando quinze minutos para as vinte horas, entrou no elevador e foi até o quarto andar, tal como lhe fora informado pelo porteiro no último sonho. O elevador parou e a porta se abriu. Tudo ao seu redor parecia ameaçador. A ansiedade aumentava à medida que se aproximava do apartamento. Por um instante, considerou a hipótese de que aquela situação pudesse ser uma mera fantasia da sua mente estressada, mas ficou à espera do calor da discussão para conhecer a verdade. O momento era aterrador. Os segundos pareciam eternidades. Ariel tinha pela frente estas duas alternativas possíveis: sobreviver ou morrer. O desfecho dependeria da sorte. Com o olhar fixo na porta do apartamento, ouviu o som de uma bofetada, ao qual seguiu-se uma expressão de baixo calão pronunciada por voz masculina. A voz era fanhosa. Nesse instante, a discussão teve início. O coração batia acelerado. Faltava exatamente um minuto para o instante decisivo. Sacou a pistola, recuou um pouco e arrombou a porta com um violento pontapé. Assim que entrou no apartamento, viu um revólver preto apontado na sua direção, empunhado por um homem vesgo e com o rosto avermelhado. Era a visão do Inferno. Naquele momento, era tudo ou nada. Um erro poderia ser fatal. Na troca de tiros, o marido de Rosa Maria foi baleado, mas resistiu aos ferimentos. Depois de ter sido atendido no hospital, foi conduzido até a Delegacia Policial para as providências legais cabíveis. O sonho premonitório tornou-se realidade. Não era fruto da imaginação de Ariel. Solange ficou assustada com a narrativa. Nunca tivera notícia de um caso de pressentimento que houvesse redundado em fato consumado. Ariel foi o anjo da guarda de Rosa Maria. Sacrificou o seu tempo para que a vida dela fosse poupada. Cumpriu, sem tibieza, a sua missão policial.

Passados dois meses, Jorge e Solange estavam entrosados numa convivência profissional construtiva para ambos. Encerrado o expediente daquele dia, Jorge chamou Solange em sua sala. Queria conversar com ela. Nessa conversa, conseguiu convencê-la a matricular-se numa escola profissionalizante para fazer o curso técnico de contabilidade. Assim, além de recepcionar os clientes, ela poderia também auxiliá-lo na escrituração contábil. As despesas escolares correriam por conta do escritório. Estudaria no período noturno. Solange agradeceu-lhe pela oportunidade de crescimento profissional. Na vida relacional, as palavras podem enganar, mas as atitudes sempre dizem a verdade. Os anjos da guarda existem mesmo. Tanto neste como no outro mundo.

Carlos Henrique Pereira Maia
Enviado por Carlos Henrique Pereira Maia em 26/07/2013
Reeditado em 12/08/2014
Código do texto: T4405891
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