A Próxima Vítima

Na pequena e pacata cidade costeira de Porta do Céu, a população não falava em outra coisa: nos últimos dois meses sete pessoas haviam sido mortas na região.

Segundo as apurações da policia, todas as vítimas tinham alguma ligação com o mundo do crime.

Por não existir nenhuma evidência que levasse ao esclarecimento do mistério, os investigadores trabalhavam com duas possibilidades: a primeira seria a presença de um grupo de extermínio atuando naquela área e a segunda, a de que estaria havendo uma disputa de território entre bandidos.

Quanto aos corpos, o que mais chamava a atenção era o fato de que todos haviam sido atingidos por um único tiro, de grosso calibre, no centro da testa, e os disparos teriam sido sempre feitos à curta distância, praticamente à queima-roupa.

Oficialmente não existiam suspeitos. Porém, à surdina, corria pela cidade o boato de que as autoridades desconfiavam de um elemento recém-chegado do nordeste. Mas que por tratar-se de alguém extremamente perigoso, com péssima reputação em sua terra natal, preferiam fingir que ele não existia. Isso, pelo menos, até que um confronto fosse inevitável.

Já eram quase sete horas da noite. Germão Silvério, sertanejo de porte avantajado, nascido no interior da Bahia, homem violento e de limitadíssima paciência, muito chegado a sustentar-se através do esforço alheio, resolveu que precisava dar uma volta pela cidade. Em aproximadamente mais duas horas, iria se encontrar com Deolinda – a única pessoa na face da terra que fazia com aquele homenzarrão o que bem entendia. Mas, antes do encontro, o sertanejo teria que arrumar uns trocados para fazer um agrado à fogosa mulata e assim, quem sabe, convencê-la mais facilmente a passar a noite com ele.

Na expectativa de achar alguém de quem pudesse arrancar o patrocínio para a noitada, Germão enfiou a pistola na cintura, escondida sob o blusão, bebeu mais um gole de sua pinga favorita e se pôs a caminho.

Sua intenção era atacar a primeira pessoa que aparecesse, não importando quem fosse: velho, jovem, homem ou mulher, qualquer um servia. Tinha consciência de que com as mortes ocorridas nos últimos dias a população da cidade havia reduzido, e muito, os seus passeios noturnos. Poucos se arriscavam a sair de suas casas e, por isso, ele não poderia ficar escolhendo muito sua vítima.

Na verdade, com seu gênio violento, Germão torcia para que surgisse alguém metido a valente. Já fazia dias que não disparava sua preciosa arma, e não gostava de deixá-la sem uso por muito tempo. Além do mais, em sua opinião, era bom balear um ou outro de vez em quando. Isso aumentava sua fama de homem cruel e impiedoso, o que mantinha não somente seus rivais mas também a toda força policial caipira daquela cidadezinha – seis ou sete homens – fora do caminho.

Enquanto isso, em outra rua do bairro, Dona Ondina, uma simpática e solitária velhinha de setenta e seis anos, que, pela jovialidade e disposição, aparentava bem menos, viúva do Dr. Dionísio Trancoso, estava pronta para fazer sua pequena caminhada noturna. Hábito incorporado a sua rotina há algumas semanas.

Dr. Trancoso fora um antigo delegado da cidade. Homem rude, que achava que a justiça deveria ser feita mesmo à margem da lei. Em sua época, era o terror da bandidagem. Não via nenhum problema em sacar e usar sua potente Magnum 44 para eliminar elementos que ele considerasse prejudiciais à saúde da comunidade local.

Do falecido, Dona Ondina herdou não só o gosto pelas armas – sabia manusear com muita destreza a velha Magnum – e por filmes policiais – principalmente os protagonizados por Charles Bronson, como também um certo desprezo pelo perigo, além da convicção de que os cidadãos que desejassem uma sociedade limpa deveriam eles mesmos providenciar a remoção da sujeira.

Por mais que os conhecidos a advertissem sobre os riscos existentes naquelas saídas à noite, a velhinha pouco ligava para eles. Dizia que, com a idade que possuía, já havia vivido o suficiente e estava mais do que na hora de partir ao encontro de seu marido.

Com tudo pronto, pendurou no ombro uma antiga e desgastada bolsa de couro, apanhou também uma sacola de papel, cheia de coisas velhas – segundo alguns vizinhos mais maldosos: coisas do falecido, que a saudosa e carente viúva fazia questão de levar para dar umas voltinhas – e partiu para seu passeio. Não sem antes fazer uma prece para São Jorge, seu protetor.

...

Germão parou no final da avenida Beira-Mar, onde julgou ser o lugar ideal para armar uma cilada. Naquele trecho, de um lado da rua, havia somente duas casas e ambas estavam vazias. Do outro lado, o mar e uma larga faixa de areia, onde alguns casais, aproveitando a pouca iluminação existente, apareciam, vez ou outra, em busca de privacidade. Além disso, algumas vezes passavam por ali pessoas que vinham caminhando pelo calçadão a fim de alcançar, um pouco mais à frente, a rua que servia de ligação entre a praia e a principal praça da cidade.

Germão tinha certeza de que, cedo ou tarde, acabaria aparecendo por ali alguém mais descuidado.

...

Por sua vez, Dona Ondina, resolveu seguir até o centro da cidade. Queria somente dar uma volta pela praça. Gostava de observar os jovens casais de namorados e relembrar os velhos tempos, quando, junto ao marido, ia para aquele mesmo local.

Querendo chegar mais rápido, resolveu seguir pela avenida Beira-Mar.

...

Germão estava bastante irritado por tanto esperar. Já fazia mais de uma hora que encontrava-se ali e não passara viva alma. O horário do encontro com Deolinda estava se aproximando e, até então, nada de aparecer alguém. Lembrou das notícias sobre os assassinatos e culpou a imprensa por não haver faturado nada até aquele momento.

Quando já pensava em ir embora, notou o vulto que caminhava lentamente em sua direção, com certeza, sem o notar. Viu logo se tratar de uma idosa. Imaginou que com ela não conseguiria grande coisa, mas talvez conseguisse o suficiente para comprar pelo menos um saco de pipoca, o que de jeito nenhum agradaria Deolinda. Já estava vendo sua noite junto à mulata indo para o brejo. E, se já estava irritado, ficou mais ainda ao pensar nessa possibilidade.

Enquanto esperava a velhinha chegar ao seu alcance, o sertanejo concluiu que, com ela, seria um desperdício usar a arma. Provavelmente o que arrecadaria, com aquele serviço, não seria o suficiente para comprar e repor as balas que fossem usadas. Se a velhota criasse algum problema, resolveria a questão no tapa. Não seria a primeira e, provavelmente, nem a última vez que tiraria a vida de alguém à base de sopapos. Infelizmente sua querida pistola teria que esperar uma outra ocasião para ser usada. Seria muito desonroso para ele, e um desperdício de munição, matar uma velhota a tiros. No tabefe, além de mais econômico, poderia ser bem mais divertido.

...

Logo que pisou no calçadão, Dona Ondina, que com o marido aprendera a observar tudo à sua volta, notou, mais adiante, uma pessoa se esgueirando pelas sombras. Porém, não fez nenhuma menção em dar meia volta. Mesmo porque, se fosse alguém mal intencionado, ela não teria forças nas pernas e nem fôlego para escapar correndo. Confiante na proteção de São Jorge e em sua própria capacidade de livrar-se de mais uma situação perigosa, respirou fundo e, decidida, seguiu adiante.

Felinamente, Germão esperou em seu esconderijo. Repensou a idéia de sacar a arma, mas viu que era mesmo desnecessário.

Quando a velhinha estava quase a seu lado, saiu do esconderijo e se postou em sua frente:

Aí, velha, sem muita presepada, passa a bolsa!

Dona Ondina se assustou mais com o tamanho incomum do sertanejo do que com a ameaça em seu tom de voz. De longe não havia notado que ele era tão grande. Na verdade, Germão tinha quase dois metros de pura estupidez:

– Calma, meu filho. Só tenho coisas sem valor.

– Calma é o cacete. Passa a droga da bolsa que eu resolvo se tem valor ou não.

– Olha, o senhor não vai encontrar nada de bom. Nesta bolsa só tem coisas de velho e nesta sacola são somente bugigangas.

– A sacola, pode enfiar no rabo. A Bolsa, me entregue de uma vez. Tô perdendo a paciência. Porra!!

– Mas não tem...

A idosa nem conseguiu completar a frase. Recebeu um violento tapa no rosto, que a jogou no chão. Germão, ato contínuo, agarrou e puxou com brutalidade a bolsa, que ainda se encontrava presa ao braço de Dona Ondina, rompendo a alça e arrancando também um grito de dor da corajosa velhinha.

– É bom ter alguma coisa que preste aqui dentro. Senão, vou arrebentar o resto da sua cara, velha inútil.

Dona Ondina, sempre agarrada à sacola de papel, ergueu-se com dificuldade. Ao mesmo tempo em que Germão terminava de examinar sua bolsa:

– Nesta merda só tem papel e remédio? Velha imbecil! Como você quer que eu viva desse jeito?

– Viver?! Não sei, meu filho. Mas acho que você não precisa mais se preocupar com isso.

– O que você disse?! Sua... sua filha da ...

O sertanejo sacou a arma, e o som de um tiro espalhou-se pelas ruas próximas.

...

No dia seguinte, na delegacia, o chefe de policia conversava com seus subordinados:

– Este é o oitavo corpo. O prefeito não está nada satisfeito. Quem foi a vítima desta vez?

– Trata-se de Germão Silvério, um velho conhecido de nossos arquivos – respondeu um dos investigadores. – Morreu como todos os outros: com um tiro de grosso calibre, bem no meio da testa.

...

Em sua casa, Dona Deolinda, aquela simpática e solitária velhinha, enquanto limpava e lubrificava a recém utilizada Magnun, falava em pensamento com seu saudoso marido:

- Você viu, meu velho? Nossa menina ainda funciona que é uma beleza. Mandamos mais um pra você.

...

E, assim, na pequena e pacata cidade de Porta do Céu, o mistério permanecia. A população não falava em outra coisa: nos últimos dois meses oito pessoas haviam sido mortas na região.

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Sykranno
Enviado por Sykranno em 04/05/2012
Código do texto: T3649177
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