O pequeno bandido

 

Era cedo ainda e já tocavam a campainha. Uma mulher de uns trinta e poucos com um gurizinho de não mais de doze estavam diante do portão.

 

- Tem alguma coisa para dar? Estamos com muita fome. Desde ontem não temos o que comer. E há três dias não sabemos o que é uma refeição completa.

 

O homem voltou a trancar a porta, foi até a cozinha e pediu para a esposa preparar dois sanduíches de presunto e queijo. Retornou ao portão e, pelo vão da grade, entregou à pedinte uma sacola de supermercado com os sanduíches e duas bananas.

 

- Deus lhe ajude e proteja. Será que o menino pode ficar aqui um instante? O senhor pode deixá-lo entrar para proteger-se no abrigo? Já começa a chover e ele está doente. Teve febre alta esses dias. Só até a chuva passar. Depois vai embora sozinho.

Sob os pingos de uma chuva fina que principiava, o homem abriu o portão e deixou que o menino fosse comer o sanduíche e a banana no abrigo. Coitadinho, franzino de dar dó. Dizer que tinha doze, só com bastante boa vontade. Talvez nem isso tivesse. Dava para notar seu corpo folgando dentro do agasalho de malha.

 

O menino devorou o pão com certa avidez. Comeu a banana e depositou a casca no chão, encostada na parede, sob o olhar complacente e piedoso do homem.

 

A menininha veio de dentro da casa ver o que se passava. Olhou curiosa para o garoto e perguntou seu nome.

 

- Jeremias - disse ele em tom quase inaudível.

 

A menina chegou mais perto e pediu para ele repetir, pois não havia entendido. Falara muito baixo, como se tivesse vergonha do nome ou da sua posição social.

 

- Jeremias! - gritou, ao mesmo tempo em que puxava a menina para si, virando-a de costas para ele e imobilizando-a com uma gravata, utilizando para isso o braço esquerdo. Com a outra mão livre e muita agilidade, sacou um pequeno revólver escondido na cintura, sob o agasalho - Jeremias - gritou mais alto ainda, agora com o cano do revólver pressionando a cabeça da pequena emparelhada com o ombro dele.

 

O homem assistia à cena estupefato. Sentiu o impulso de precipitar-se sobre o menino e desfalcá-lo da arma, mas deteve-se com medo de que ele apertasse o gatilho. Decidiu recuperar a calma e tentar o diálogo, enquanto examinava melhor a situação. Afinal, o revólver poderia ser de brinquedo. Ou talvez nem estivesse carregado.

 

Custava a entender como aquele menino escanifrado, aparentemente tímido e tremendo de fraqueza, em poucos segundos transmudara-se em gigante. Ditava ordens na linguagem dos bandidos e o mantinha submisso diante da filha ameaçada de morte.

 

Com os gritos, a esposa acorreu para inteirar-se do que acontecia. No mesmo instante surgiam na rua dois rapazes vindos não se sabe de onde. Ordenaram ao homem que abrisse o portão, ou o Jeremias estouraria os miolos da menina. Sem alternativa, ele acionou o controle remoto e os outros entraram de armas em punho, anunciando o assalto. O portão foi fechado novamente, dividindo dois mundos. A paz aparente lá de fora e o terror do lado de dentro.

 

Os reféns foram conduzidos para o interior da casa. Na sala tiveram de deitar-se no chão. A menininha iniciou um choro. O bandido mais velho, que parecia ser o chefe, agarrou-a pelos cabelos e disse:

 

- Cala a boca, pirralha, ou leva chumbo e seu pai e sua mãe também morrem. Você está entendendo que isto aqui é um assalto e não uma brincadeira de amiguinhos?

 

A criança engoliu o choro e assentiu com a cabeça.

 

- Melhor assim. Não queremos machucar ninguém. Só queremos dinheiro, jóias e armas. Onde estão? Onde é o cofre?

 

- Não temos cofre, nem armas, nem jóias. O dinheiro está no meu bolso - respondeu o homem.

 

- Engraçadinho. Uma casa destas, quase uma mansão, dois carrões no abrigo. E não têm jóias nem dólares - disse o bandido chutando as costelas do homem, que só pode reagir com um gemido surdo.

 

- Então vamos procurar.

 

Enquanto o chefe montava guarda cuidando dos três, Jeremias e o outro davam início às buscas pela casa, revirando tudo em todos os cantos. As gavetas eram retiradas dos nichos e viradas no chão. As roupas arrancadas dos armários, na mais completa desordem. O que interessava era separado.

 

A chuva dera trégua. Fininha e pouca, não fora suficiente nem para molhar a grama do jardim. Melhor para a polícia, que montava o cerco à casa sem que ninguém de dentro ainda tivesse percebido.

 

O motorista do ônibus que passava no exato momento em que os bandidos conduziam os moradores para dentro da casa, achou estranho aquele cortejo. Mesmo não vendo as armas, teve a intuição de que coisa boa não estava acontecendo ali. Fazendo o trajeto várias vezes por dia, acostumara-se com as casas e os moradores. Em algumas delas até sabia quem as habitava e seria capaz de arriscar um palpite para apontar quem era de fora do bairro. Pois aquele homem entrando por último na casa, seguindo o dono dela, causava estranheza. Fosse uma visita ou alguém que tivesse ido prestar um serviço qualquer, não seria o último a entrar.

 

Na quadra seguinte parou o ônibus e usou o celular para chamar a polícia. Explicou o que vira e o motivo da sua angústia.

 

A primeira viatura não demorou a chegar e estacionou duas casas antes. Os dois policiais desceram. Um deles, com a arma em punho, foi andando em direção à casa, protegendo-se rente ao muro das casas vizinhas. O outro, sob a cobertura do primeiro, foi até a frente da casa e olhou tudo com experiente atenção. Tocou a campainha. Ninguém atendeu nas três vezes em que repetiu o gesto. Todas as janelas estavam abertas.

 

O cabo então voltou para o carro, dando discreto sinal para o soldado permanecer na posição. Pelo rádio pediu reforço. Em poucos minutos chegaram mais duas viaturas. A turma da pesada. Um tenente, um cabo e dois soldados em cada uma. Dois policiais em motocicletas vieram para bloquear a rua nas esquinas.

 

As camionetes se posicionaram. Os dois tenentes rapidamente traçaram a estratégia. Resolveram não invadir a residência, apenas a cercaram. Todos protegidos, deram um toque de sirene. Ninguém apareceu, a não ser as pessoas das outras casas.

A sirene foi novamente acionada, com mais intensidade agora. A silhueta de um homem foi vista ao fundo de uma das janelas do pavimento superior. Um dos tenentes usou o megafone e ordenou que se entregassem para que ninguém saísse machucado. Não houve resposta.

 

Alguns minutos depois, a sirene soou pela terceira vez e o tenente voltou a falar usando o megafone, renovando o apelo. Desta feita, na janela onde anteriormente fora vista a silhueta, surgiu um homem usando a criança como escudo. Pistola automática encostada na cabeça dela.

 

- Só sairemos daqui mortos. Antes morrem os da casa. A menina primeiro.

 

O tenente gastou seu arsenal de argumentos em vão. Chamou então um especialista em negociações dessa natureza. Com o major vieram dois atiradores de elite e uma ambulância dos bombeiros. Nesta altura dos acontecimentos, alguns curiosos aglomeravam-se nas cercanias. Tiveram de colocar cordões de isolamento para mantê-los afastados, visando à sua própria segurança e também para não dificultarem o trabalho da polícia. A imprensa veio. Um canal de televisão passou a transmitir imagens ao vivo. Para eles, um prato cheio. Audiência garantida à custa da desgraça dos outros.

 

O negociador tentava convencer os bandidos a se entregarem. Sem sucesso. Não respondiam. A companhia de energia cortou a luz do quarteirão.

 

Depois de algumas horas apareceu na janela um cartaz com um número de celular. Do dono da casa.

 

O negociador ligou. O chefe dos bandidos atendeu e exigiu que tirassem todo o aparato policial. Sairiam em um dos carros da família, levando a menina e a mulher como reféns. Que ninguém os seguisse. Quando se sentissem em lugar seguro, abandonariam as duas. Mais tarde o carro.

 

O major respondeu que isso não seria possível. O único caminho viável era se entregarem.

 

- Então nada feito. Daqui a uma hora a menina morre. Desligou.

 

O negociador tornou a ligar para o celular. Não atenderam. Várias vezes e nada. Esperou alguns minutos e tentou o megafone. Sem resposta.

 

Tocaram as sirenes de todas as viaturas em breves espaços de tempo. Seguiu-se uma hora de silêncio. Os policiais apostavam que o bandido não cumpriria a ameaça.

 

O celular do major tocou. Era o número da janela. O bandido avisando que chegara a hora da menina. O major, com toda a calma pertinente e necessária ao ofício que abraçara, pediu tempo. Aproveitou para usar novos argumentos, mas sem ir longe demais. Queria dar espaço para os bandidos refletirem.

 

A tarde foi passando sem que nenhum dos lados cedesse. Pela fotografia tirada do bandido na sua única aparição na janela, embora com parte do rosto encoberto pela cabeça da menina, a perícia da polícia civil, com a colaboração de dois delegados, rapidamente conseguiu identificá-lo. Foragido da penitenciária estadual havia dois anos. Perigoso, mas com pontos fracos. O seu perfil psicológico indicava que não seria capaz de matar uma criança. Menos mau, apesar de que nunca se sabe do que um bandido é de fato capaz quando acuado.

 

Antes que a tarde terminasse, o diálogo foi retomado via celular. O chefe disse que se entregariam, mas somente na presença de um juiz, um promotor, um conselheiro tutelar e um pastor evangélico conhecido. O major concordou e disse que em uma hora os quatro estariam ali.

 

Pouco tempo depois, chegaram o juiz e o promotor designados. Mais tarde, o conselheiro tutelar. O pastor foi o último. Foram buscar um que pregava na penitenciaria, muito conhecido do chefe. Obtinha dele certo respeito. Por isso o major decidiu que ele falaria ao celular com o bandido.

 

Após curta conversa, o pastor passou o telefone para o major, a fim de ultimar a negociação. O chefe exigiu que todos os policiais se afastassem e fosse postada junto ao portão uma única viatura, de ré, com o tampão aberto, ladeada apenas por dois tenentes, o juiz, o promotor, o conselheiro tutelar e o pastor. Ninguém mais. O negociador concordou mas exigiu que fossem libertados os reféns primeiro. Depois sairiam os dois maiores, um de cada vez, sem as armas e com as mãos sobre a cabeça. Ao chegarem junto à viatura seriam revistados e algemados. O menor sairia por último e iria em outra viatura, sem algemas.

 

O bandido disse ainda que iria até a janela onde havia aparecido com a menina. Como confiava no pastor, aceitaria que ele certificasse a identidade dos outros, cada um mostrando no ato o respectivo documento.

 

Assim foi feito. Todos os policiais foram recuados, uma das viaturas foi trazida para frente da casa e posicionada com a traseira para o portão da garagem. O tampão foi aberto. Um tenente de cada lado com as armas no coldre. Um deles com as algemas. O pastor, o juiz, o promotor e o conselheiro tutelar aproximaram-se. O bandido apareceu na janela. O juiz mostrou sua identificação para o pastor e este falou em voz alta para o bandido:

 

- O doutor juiz.

 

O mesmo sucedeu-se com o promotor e o conselheiro tutelar. Os quatro postaram-se junto à viatura, dois de cada lado, formando junto com o veículo e os tenentes uma linha paralela à grade do jardim.

 

Embora todos os policiais tivessem recuado, foi mantido em posição estratégica um atirador de elite, abrigado fora do alcance visual dos bandidos, na casa em frente. Com um fuzil acompanharia a saída dos bandidos com a mira telescópica focada no peito de cada um, prevenindo eventual quebra do acordo. A posição que ocupava era privilegiada. Estava no ático da casa, a cerca de um metro da janela. Assim, podia enxergar muito bem quem estava lá fora, mas não era visto.

 

Após um quarto de hora, alguém de dentro da casa destrancou o portão através do controle remoto. Em seguida apareceram na porta da sala a mulher e a menina. Um dos tenentes fez sinal com a mão para que viessem devagar, com calma. Quando as duas chegaram mais perto indicou que pegassem à direita e se dirigissem até a ambulância, que mantinha as luzes de sinalização acesas.

 

A tarde morria. As luzes de emergência que haviam sido instaladas, ante a possibilidade de as negociações avançarem noite adentro, foram acesas.

 

Minutos depois, o homem foi libertado. O tenente repetiu as instruções dadas à mulher e à menina. Ele encaminhou-se para a ambulância. Notava-se alívio no seu semblante, mas não o suficiente para esconder o abatimento.

 

Pouco tempo depois, o chefe gritou de dentro da casa que ele sairia primeiro. Depois o comparsa.

 

Apareceu na porta sem camisa e com as mãos sobre a cabeça. Deu um passo e parou. Olhou para frente e para os lados como se averiguasse se tudo estava do jeito que combinaram. Lentamente se encaminhou para a viatura. Um tenente fez a revista e o outro lhe colocou as algemas. Após isso, arrastou-se para o interior do veículo.

 

O comparsa veio em seguida. Foi algemado e colocado na viatura. A porta foi fechada.

 

O menino não demorou a sair. Deteve-se na porta. O atirador de elite, como fez com os outros dois, colocou a cruzinha da mira telescópica no peito do guri e a manteve ali enquanto ele caminhava devagar para o portão.

 

Na metade do caminho Jeremias lembrou-se de que não havia deixado a arma na casa, como os outros dois. Achou que poderia deixá-la ali mesmo. Parou e levou a mão ao bolso direito da calça. Tirou-a de lá segurando o revólver de cano curto reluzindo sob as luzes dos refletores. Imaginando que o menino iria fazer uso dele, o atirador não hesitou em apertar o gatilho.

 

O projétil atingiu o peito do pequeno bandido, cruzando o tórax na transversal e saindo nas costas, para perder-se enterrado no gramado. O corpinho franzino foi projetado para trás e tombou com a parte posterior da cabeça chocando-se contra a calçada de pedra. Na altura do coração o sangue brotava do orifício deixado pela bala e tingia o agasalho surrado. Logo em seguida, de um dos cantos da boca surgiu um filete vermelho. Braço direito estendido, mãozinha espalmada.

 

Jeremias deixara de ser o gigante assustador que encarnara durante as últimas horas, para voltar a ser o menino de aparência frágil, que no início da manhã matara a fome com um sanduíche de presunto e queijo e uma banana. Com os olhos esbugalhados para o céu escuro, jazia tocando levemente, com as pontas dos dedos indicador e médio, a coronha do seu revólver de brinquedo.

 

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N. do A. – Na ilustração, Menino Chorando de Giovanni Bragolin (Itália, 1911-1981).

 

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 15/03/2012
Reeditado em 24/11/2021
Código do texto: T3555543
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