VÍTIMAS PASSIONAIS *

O estampido da arma, à queima roupa, breve, fatídico, não o livrou da dor, antes iniciou um outro processo, sem falarmos da questão legal do assassinato.

Se a ilusão de que os problemas resolver-se-iam com aquele gesto tresloucado, sentia-se malogrado, a sensação de insatisfação agigantara-se de forma cruel e imensurável.

Debalde as tentativas da namorada pelo fim do relacionamento, ele não queria ouvir, jamais a deixaria. Vê-la só, independente, era insuportável, a possibilidade de ser de outro o asfixiava. Assim passara a ser a sua rotina, diuturnamente visitado pelos sentimentos da traição, real ou imaginária.

Taciturno, vivia alheado, como se num convívio íntimo inacessível ao mundo exterior, A ideia do abandono o perseguia. Ela não o deixaria enquanto não tivesse outro, assim pensava e em tudo agia para não dar chances de ela sentir-se independente. Tudo era motivo e razão para estar presente, mesmo percebendo que trazia incômodos, de que já não era bem vindo.

As noites de sonos breves, de suores noturnos, da obsessão a assombrá-lo,debatia-se no seu universo atormentado. A paz o deixara e a vida perdera suas luzes e cores, os pensamentos o crucificavam ao mesmo tema, ela o deixaria, seria traído.

Como imaginar outro a beijando, a possuindo ? Pior, bem pior que tudo, era sentir-se preterido, expulso do coração dela. Ela lhe pertencia, não admitia a hipótese de perdê-la, embora já a soubesse distante de si. Era tolerado pela insistência, ela cada vez mais arisca, menos afável. Sentia-se um mísero, um pedinte de esmolas em raros momentos de afeto, implorados.

A traição não se consumara, mas a ideia de ser desprezado, expulso de seus sentimentos, era o bastante para exilar-se em si e viver o fel das desilusões, como se tivesse sido traído pelo abandono. Cada aguilhão da dor reputava a ela como causadora, num misto de sensação de perda e mágoa por fazê-lo penar naquelas angústias. Já não discernia com clareza entre esses dois sentimentos intensos, o amor e o ódio. Nascidos no fértil solo das desconfianças, onde o orgulho duela com os bons sentimentos, exigindo desforras.

Crescia em si um monstro a reivindicar satisfações, cobranças da auto estima abalada, pelas dores vividas sem tréguas, do pensamento fixo e atormentado de cada momento, da paz que já não conhecia.

A custo mantinha-se sob controle, não demonstrando o vulcão prestes a eclodir, não fora a esperança de mantê-la junto a si, teria transbordado seus azedumes e iras, como lavas incandescentes. Agia mansamente, como um apaixonado querendo recuperar a amada. Onde a precaução imperava sobre os ímpetos refreados.

Era um trapo em vida, arrastando-se para parecer natural, arrasado no íntimo, fera acuada querendo o momento para o golpe certeiro. Duas questões se lhe impunham como definitivas. A reconquistaria e superariam a crise ou a eliminaria para livrar-se daquela sensação humilhante e aterradora de perda.

A idéia de libertá-la, de consentir com a separação, não encontrava guarida em suas cogitações...talvez depois de reconquistá-la, a deixasse, como reverso da moeda pelas aflições sentidas, na satisfação de seu ego aviltado, mas agora era a parte ofendida, desprezada, esperando reverter a situação desfavorável.

O que o alimentava, o prendia na obsessão de querê-la ? Na verdade não sabia mais se era amor, torturava-se por vê-la bem enquanto ele sofria, saudável em contraponto aos seus delírios, alegre enquanto se sentia definhando. Como se a perdesse em cada instante, na impotência de retê-la na sua independência. Desconfiava do simples olhar dela, perscrutando como querendo adivinhar seus mais recônditos pensamentos, pensaria em outro ? Por que só ele sofria, será que nunca o amou ? enrodilhava-se nas confusões mentais.

Sedimentava, aos poucos, a idéia de eliminar seus problemas, focados unicamente em não perdê-la. Antes a mataria do que deixá-la viver a sua liberdade.

A alegria dela conspirava contra, em seus devaneios febris e ensadecidos, com a sua dor. Não era um sofrer compartilhado, findava-se o relacionamento de forma unilateral, onde só ele sofria. A ela restava o papel de uma amiga consoladora, mais aviltava o gesto que consolava. Vê-la bem, sem ele, foi o corolário para sua doentia decisão...

O eco seco daquele disparo mortal, consumando o gesto torpe, covarde, não o libertara.

A sentia próxima, uma sombra na consciência , como se assassinada, ressurgisse, e o assassinasse numa pena perpétua, matando-o lentamente de desgosto nos anos, sempre repelindo-o, e ele sempre a seus pés pedindo para não deixá-lo.

Tanta foi a necessidade de não libertá-la, que a tinha, definitivamente dentro de si, presente, acusatória, nublando anseios futuros, tiranizando-o.

Era um homem, tinha sonhos, amor, esperanças. Virou um resto, um Ser humilhado.

As mãos assassinas, um estigma, um orgulho vão...

TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA SELETAS DE CRÔNICAS, EDITORA CÂMARA BRASILEIRA DE JOVENS ESCRITORES, EDIÇÃO ABRIL DE 2011