Jac Sulivan

Talvez eu pudesse viver em um mundo bonito. Quem sabe um mundo contido, cheio de risos, fios e, extremamente, bonito. Eu não gosto muito dessa idéia. Viver em um mundo perfeito, cheio de tantos e recatados encantos. Não me apetece. As coisas seriam mais fáceis se vivesse assim. Não haveria dor, medo, pranto. Quem sabe não houvesse nem o ranger de dentes e todas as outras coisas. Um mundo com campos de lírios, cheio de lírios. O sol do meio-dia tocando minha pele, fazendo-me transpirar um cheiro de mato, de tempo corrido. Mas eu não gosto de viver assim. Talvez por medo, de tanta perfeição. Ou por nojo, as coisas comuns e supérfluas me enojam. Eu sinto ânsia quando vejo crianças correndo em parques e casais se amando, desesperadamente, em motéis das ruas de Nova Iorque. Mas eu, definitivamente, não viveria em um mundo assim, porque não posso. O calor de minha alma foi retirado. Perdi tudo o que tinha. Minha vidinha supérflua, minhas transas em motéis, minhas tardes nos parques com minha jovem sobrinha. Tudo. Talvez me reste uma coisa, quem sabe ainda me reste. Não sei também se resta: passo noites em claro tentando encontrar respostas para minhas dúvidas e meus anseios por respostas.

Eu não era, muito menos um dia serei o tipo de cara que ama. Talvez porque ver a morte a sua frente tire-nos todo o amor. Ou talvez, de modo distinto, eu nunca tenha amado realmente. Eu queria ser feliz, quem não quer? Até o diabo quer, porque eu não poderia aspirar a isso? Eu amava uma mulher. Ela não era do tipo que ama apenas a um único homem: era puta. Não puta de puta, mas puta de espírito. Tinha uma segurança de si, que me deixava louco e cheio de tesão. Ela era uma bela mulher. Até que a morte veio. Morreu de morte morrida. Sabe? Morreu sem mais nem menos. Sem por que, sem dúvidas, sem respostas... Morreu sem me dar o que eu queria: um sim. Havia pedido-a em casamento dois dias antes. Foi difícil aceitar sua morte, mas eu tenho de seguir. Algumas vezes seguimos sozinhos, outras seguimos juntos, outras ainda, preferimos seguir juntos ou solitários, mas não podemos: tem sempre alguém que está ao nosso lado. Eu sei que deveria seguir sozinho, mas adoraria ter alguém que aparecesse ao meu lado e me desse um motivo para continuar.

Nunca encontrei esse alguém. Depois de algum tempo eu desisti: o amor é para as putas de bordéis. Elas sim sabem amar. Amam de dia, noite e quiçá pela tarde. Eu? Amava todas as madrugadas, sem nunca tê-lo correspondido. Como se faltasse algo dentro de todo o meu amor. Como se todo o amor do mundo não fosse o suficiente para que alguém me amasse. Eu adoraria ter amado você, mas não pude. Algo me impediu. Não sei bem ao certo se o medo, ou se algum tipo de nojo. Sei, com certeza, que era por não poder. Não poderia amar você, sendo que não sei o que é o amor. Como viver algo que desconheço? Eu queria saber. Mas o tempo é curto, as horas continuam passando, e você deve estar distante de mim agora... Ao menos é isso que espero.

Quanto as crianças no parque. Tenho aversão a isso. Desejo do fundo de minha alma destruir os parques, queimar aqueles brinquedos repugnantes e nojentos. Por quê? Ora, por quê? Pode parecer ridículo, mas eu nunca pude brincar em um daqueles. Minha mãe, se assim posso chamar aquela mulher, abandonou-me em um orfanato quando tinha quarto anos. Sei porque meus pais adotivos, Lilian e Charles, contaram-me. Foram eles quem me deram todo o amor que eu precisava. Toda a luz que nunca havia visto, vi com eles. Até que a morte os levou. Hoje pensou, todas as manhãs, se a morte gosta de mim? Talvez seja: todos que eu amo, morrem. Todos. Ela não pode me querer bem. Ou talvez tire todos que amo do mundo, para que eles não sofram. Será? Fosse assim, porque prender os assassinos? Por que prender aqueles que comentem crimes? Talvez por puro medo: como viver sem aqueles que amamos? Como amar aqueles que morreram?

Ah minha doce Querida. Sei que pode ser tarde para dizer tantas – e, ao meu ver, poucas coisas – mas eu não posso deixar de dizê-las antes de partir para o fim. Um fim tão tenebroso quanto o próprio principio. O fim: escuro e nebuloso. Amor, eu amo muito você. Mas não posso viver com este amor. Você precisa ir, partir antes que a morte chegue, antes que tudo acabe. Não posso permitir que morra pelas mãos da morte. Por isso, matar-te-ei eu mesmo. Matar-te-ei por amor. Por desejo. Amo-te tanto e sem você não sei viver, que depois de morta, jazerei ao seu lado.

Será breve. Tudo ficará negro, e logo, assim espero, voltará ao normal. Meu amor. Meu lindo amor. Perdoai meus erros, pois assim eu fiz contigo: perdoei o fato de me amar. A dor que sinto por perdê-la é insana demais para minha mente. Queria morrer eu mesmo. Mas eu sei: a morte não vai deixá-la em paz. Entenda. É duro morrer, mas só morremos uma vez. Uma única vez...

E assim disparei. Atirei contra ela. Morreu. Como todas as outras: morreu de morte que se morre. Uma morte sem explicação, sem dor, sem tormento. Assim é a morte que eu levo. Quando chegou minha vez, a arma falhou. Essa era a trigésima terceira vitima. Novamente, uma mulher. Novamente, uma vida foi salva. Quem será a próxima? Talvez um dia a arma não falhe mais. Quem sabe? Tenho uma missão a cumprir. Tenho que chegar ao fim. Tenho de encontrar minha própria morte. Quem sabe agora eu mude a história? Cansei de ser um jovem perturbado. Quem sabe eu seja um jovem que voltou do Iraque? Gostei. Serei esse da próxima vez. Agora preciso voltar: minha esposa deve estar me esperando para o jantar. As crianças precisam ouvir minhas histórias antes de dormir. Quem sabe um dia eu lhes conte que a arma falhou 34 vezes. Não. Hoje vou contar sobre fadas e gnomos. Um dia, elas descobriram por si próprias, o que acontece...

"Leiam minha apresentação: http://www.recantodasletras.com.br/cartas/2394709"

Le Vay
Enviado por Le Vay em 07/07/2010
Reeditado em 23/07/2010
Código do texto: T2364586
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