O dia em que uma mulher caiu do céu - Final

-Doutor Chinguare, quero-lhe dizer uma coisa do fundo do coração!

-Sr. Moisés, veja lá, não diga nada que depois se arrependa…

-Não, nem pensar, lembrei-me que já devemos ter 24 horas desta menina entre nós e ainda não sabemos nada dela, nem o que fazer com ela!

-Chamou-lhe menina por ela ser virgem?

-Nada disso. É um hábito que aprendi com os portugueses. Tudo o que é muito fica pequenino. Um bom peixinho no forno é uma travessa para quatro, uma cervejinha é a tarde toda com tremoços e orelha de porco, ou não é?

-Pois, também é verdade, mas diga lá o que achou deste almoçozito?

Moisés e Chinguare riram-se como não se riam há muito tempo.

-Olhe, doutor, o que lhe queria dizer é que o meu azar é que ela é só uma vítima e nunca foi uma suspeita.

-Ó Sr. Moisés, não me diga que me vai desiludir depois deste almoço tão intelectual.

-Talvez vá, culpa do vinho, mas veja por onde eu quero chegar. Se ela, a nossa menina, fosse uma suspeita, eu, simplesmente, prendia-a e ganhava tempo. Nem precisava de saber se era culpada ou de que crime se tratava. Ía dentro e pronto.

-Era para o lado que dormia melhor?

-Já vi que também conviveu com portugueses…

-Não, é só o vinho a falar – o doutor ergueu o copo a modos de brinde e desataram a rir novamente.

-Bem, continuando, ela é uma vítima e o que temos de fazer agora é tratá-la como tal, ou estou a mentir? – disse Moisés, já sem conseguir disfarçar a embriaguez que lhe enrolava a língua.

-Pois, assim quer dizer que é para esquecer, que isso de tratar das vítimas dá muito trabalho – disse Chinguare, devolvendo uma sonora gargalhada.

Tia Antónia abanava a cabeça, ao longe, no fundo do quintal.

Continuaram por mais um pouco despejando baboseiras, vinho e a comerem o funge de peito alto.

Lopes irrompeu em alvoroço.

-Chefe, por favor, chefe, esqueça a regra nº1 agora!

-Mau…

-Sim, chefe, tem razão! O praça Lopes apresenta-se em serviço e respeito – fazendo uma continência musculada.

-Lopes, não é nada disso, pá. Acalma-te e diz ao que vens.

-Chefe, desta vez não tem mais quê! A bruxa fugiu!

-Fugiu? – gritou o doutor Chinguare, levantando-se ainda com o copo de vinho na mão.

-Ya, não está lá, nem perto! Foi!

Moisés olhou em redor do quintal da Tia Antónia, quase vazio, e suspirou:

-Ai, os meus nervos…

*

-É impossível, Moisés, ela não tinha condição de andar sem ajuda, estava toda partida – disse o doutor Chinguare já no interior do Land Rover do chefe de posto Moisés, a caminho do posto médico.

-Kota doutor, com o devido respeito, mas ela bazou, escapuliu, não está lá e ninguém a viu sair, nem quê!

-Lopes, acalma-te, estamos a chegar.

O posto médico já estava rodeado, novamente, pela populaça curiosa, num burburinho amedrontado. Desta vez ninguém gritou que o chefe tinha chegado.

O chefe de posto foi o primeiro a sair da viatura.

-Lopes, toda a gente daqui para fora, já! Não quero ninguém a apagar pistas à volta do posto. Manda um tropa chamar o Kota Kijila e o Padre Silvério. Quero falar com eles agora. Os outros homens vão fazer uma busca num raio de 5 quilómetros. Tenta arranjar voluntários. No estado dela, não pode ter ido longe, mesmo com ajuda. As pessoas que estiveram no posto nas últimas duas horas ficam aqui para interrogatório.

-Sim, chefe!

Lopes seguiu todas as ordens rapidamente e voltou.

O chão meio empedrado à volta do posto estava completamente marcado por inúmeras pegadas diferentes, feitas pela multidão que rodeou o posto. Entraram no posto médico, juntamente com o doutor Chinguare.

A sala onde havia estado a mulher tinha uma cama do exército que também servia para maca e marquesa, conforme a necessidade.

Havia um móvel muito velho e usado, de cor verde esbatido, vazio. Lia-se numa placa: -Medicamentos e instrumentos cirúrgicos. - Moisés sorriu.

-Todas as ligaduras, gesso e pensos que usei nela estão aqui no chão…

Moisés inspeccionou toda a sala com bastante minúcia e cuidado. Nada.

-Lopes, vai chamar as testemunhas agora.

-Sim, chefe, já estou aqui!

-Lopes…

-Ya, chefe, deixei o chefe e o kota doutor no quintal da Tia Antónia e o chefe nem me olhou, então eu voltei no posto médico. Vi a kota aqui dentro, ela estava aqui mesmo, assim como lhe deixei.

-E então?

-Então o quê, chefe?

-Então e depois? Pá!

-Ah, ya, depois nada, chefe.

-Nada?

-Nada. Fiquei ali fora, sentado. O posto só tem esta porta e as janelas estão do lado onde me sentei. Só que, depois de quase duas horas, pensei que era tempo de ir buscar o chefe no almoço e vim só ver se estava tudo bem e ela já não estava.

-Lopes, tens testemunhas disso?

- Tenho, chefe! Eu mesmo, a minha pessoa.

-Lopes, eu quero saber se mais alguém a viu!

-Sim, chefe, confirmo que mais ninguém a viu, porque ela bazou mesmo, assim mesmo. Ninguém entrou!

Moisés e Lopes foram acompanhar as buscas e pediram ao doutor Chinguare para avisar quando chegasse o Padre Silvério e o Soba Kijila.

Toda a vila foi revistada. Nada.

Nas lavras à volta, nas estradas e caminhos. Nada.

-Chefe, assim como caiu do céu, assim foi, no ar.

-Agora não, Lopes, agora não.

*

-Sr. Chefe de posto Moisés, sei que me mandou chamar… Então, em que posso ajudá-lo? – disse o Padre Silvério, com um pequeno sorriso na cara.

-Sr. Padre Silvério, sabe muito bem, vamos deixar os sarcasmos para outra altura, pode ser?

-Ah, o caso da virgem…

-Sr. Padre, sabe que eu não sou pessoa de acreditar nem em milagres, nem em fantasmas. Foi um calo que apanhei na tropa.

-Pois estou a ver…

-Diga-me o Sr. Padre se tem alguma informação sobre o desaparecimento da mulher desconhecida?

-Pois, veja lá o Sr. Moisés que eu ainda andava a tentar saber como ela apareceu e já você me pede que lhe diga como ela deu sumiço…

-Mau!

-Não sei de nada e aviso-o que se começar para aí a imputar culpas a alguém da minha paróquia sobre esta fantochada, nós vamos ter sérios problemas, ouviu? Sérios problemas!

-Sr. Padre, eu arranjei outro calo na tropa, veja você, é que para me assustarem, não é nem com armas, nem com facas, só com a minha sogra! Só com a minha sogra! Ouviu? Você vai, imediatamente, saber junto dos seus paroquianos se alguém sabe de alguma coisa e vem aqui, direitinho, dizer-me! Fiz-me entender?

O Padre Silvério compreendeu que o chefe de posto Moisés tinha acabado de entrar num dos seus famosos ataques de fúria. Esses ataques tinham mais fama na região do que, imaginem lá, o funge de peito alto da Tia Antónia. O Padre Silvério saiu.

O soba Kijila compareceu ao chamado sem a sua habitual escolta de filhos, sobrinhos e vizinhos.

-Meu pai, obrigado por ter vindo, assim tão depressa.

-De nada, meu filho, não fui distante. Eu sabia que me ias chamar mesmo.

-Sabia? Imagino que sim. Já agora, onde está a sua família? Veio sozinho?

-Não, filho, não vim sozinho. Eles me acompanharam de manhã, mas regressaram para o kimbo e eu fiquei só com o meu neto, que foi só buscar água fresca e já vem. Por issso, eles é que foram sozinhos.

-Todos os homens voltaram?

-Meu filho, se tens uma pergunta no mais velho faz já. Estamos mesmo aqui para isso.

-Muito bem. O Soba Kijila sabe alguma coisa sobre o desaparecimento da mulher?

-Sei.

-Sabe?

-Claro que sei! E tu também saberias se o teu avô não te tivesse mandado na cidade. Você me pergunta e não aceita a minha resposta. Eu já vi algumas demónio antes. Elas são sempre mau augúrio para o povo. Alguma desgraça está a chegar.

-Bem, então, diz que sabe e que eu não sei. Concordo, não sei! Diga onde ela está!

-Filho, sou um soba velho, com pouco caminho para andar. O meu trabalho é vos ajudar nas coisas da vida. A terra existe, tu sabes, lhe pisas todos os dias quando levantas. O céu existe, tu sabes, traz a chuva e o vento para nos ajudar na terra, trás o Sol e a Noite. O que tu não aprendeste da tua tradição é o que fica no meio. Você não sabes o que fica no meio de tudo, da terra, do céu, das pessoas, da inveja, do sofrimento, da vida, da alegria… Não sabes e nunca vais saber.

-Que raio de resposta é essa?

-Filho, é para te dizer que tu nunca saberás de onde ela caiu, nem para onde ela foi, como em tudo na tua vida. Você roda, roda, sempre à procura do caminho de casa, mas o que você esquece é que a casa já não existe. Você está perdido. Pensas que és dono da justiça? És dono do Bem e do Mal? Nada, kadengue, ninguém é dono da justiça, por muitas fardas que vistas nesta tua vida.

O soba Kijila levantou-se e seguiu caminho. Moisés viu ainda, ao fundo da rua, o rapaz a trazer um pote com água. O soba parou, virou-se na direcção de Moisés e acenou.

-Adeus, meu filho!

-Adeus, pai!

As buscas duraram até ao fim da luz desse dia, aquele logo a seguir ao dia em que uma mulher caiu do céu.

Tudo o que era possível investigar, foi investigado. Tudo o que era possível fazer foi feito.

A mulher desapareceu assim como apareceu. Do nada.

Moisés compreendeu que era tempo de encerrar todos os trabalhos e mandar toda a gente para casa. Desligou todas as luzes do posto de polícia e fez sinal a Lopes para desligar o pequeno gerador, ao fundo, nas traseiras.

-Lopes, diz lá o que achas disto tudo.

-Chefe, disto tudo? Como assim?

-Da mulher que caiu do céu.

-Mas, chefe, isso não é tudo. Isso é nada… Sem importância. Você, chefe, viste o quê? Nada! Não compreendeste nada, então é nada mesmo, chefe.

-Se, ao menos, fosse uma suspeita… - suspirou Moisés.

-Nada, chefe, ela era só ela. Não complica. Assim como veio, assim é que foi. Ela fez-te o quê? Nada. Te tirou ou te roubou? Não. Querias saber dela, mas desconseguiste, só isso. Já pensaste, chefe, com todo o respeito, se descobrisses mesmo quem ela era? Ias aceitar? Ias fazer mais o quê?

-Lopes, queres que eu prefira pensar que ela era mesmo uma bruxa?

-Nada, chefe, você pensas o que quiseres.

-Lopes, mau…

-Ya, chefe, sabes do que dizem da água do Rio Bengo, né? Lá no Caxito.

-Sim e depois?

-Os kota dizem quem bebe a água do rio não consegue mais ir embora de Angola. Assim é que ficamos com os portugueses.

-Já ouvi isso, mas o que vem ao caso?

-Não é a água, chefe, é só mesmo quem não quer não vai, quem quer vai.

-E a mulher?

-É só mesmo uma mulher. Veio e bazou, pronto. Não complica, chefe, ya? Com todo o respeito…

-Lopes, já é tarde, vamos descansar.

-Sim, chefe, mas posso fazer uma pergunta?

-Sim, Lopes, podes.

-Se não caiu do céu, caiu mais de aonde?

-Do céu, Lopes, acho que não há melhor sítio do que o céu para se cair.

-Até amanhã, chefe.

FIM