O dia em que uma mulher caiu do céu 3

Com a notícia inesperada do Dr. Chinguare, sobre a virgindade da desconhecida, o chefe de posto Moisés concluiu que era tempo de passar a escrito o que foi dito.

Fechou-se na sua minúscula sala e começou a preparar o ditame do processo. Cadeira a preceito, máquina de escrever a olhar para ele, quando, subitamente, ouviu palmas de anúncio do lado de fora do posto da polícia.

-Ó da casa!!!- gritaram.

-Ó Lopes, vai ver quem é, mas ninguém entra sem me dizeres ao que vem.

-Sim, chefe, considere feito, chefe!

Lopes voltou em passo manso, cabeça baixa.

-Chefe, a situação voltou a piorar…

-Mau…

-O Padre Silvério quer falar consigo…

-O padre? Muito bem. Dá-me um minuto e deixa-o entrar.

-Já entrei – disse o padre Silvério, esquivando-se de Lopes.

Entrou e sentou-se.

-Pois, já entrou… Bom dia, Sr. Padre.

-Bom dia, sr. Chefe de posto, como tem passado?

-Muito bem, obrigado! E o sr. Padre?

-Cá vou andando, com a Graça de Deus.

O Padre Silvério, do alto dos seus setenta incompreensíveis anos, demonstrava uma alegria e jovialidade admiráveis. A batina imaculada, o cabelo branco invejável, platinado natural, davam-lhe uma áurea ilustre.

-Então, diga lá o sr. Padre, em que posso ajudá-lo?

-Nada, nada de preocupação. Não escondo que eu é que estou um pouco preocupado consigo…

-Comigo?

-Sim, sr. Chefe de posto Moisés, consigo! Veja lá que não fazem 15 minutos que me apareceram lá na paróquia umas senhoras católicas, de muito bom mando e ajuda, a gritarem que caiu uma virgem do céu, veja lá o sr. chefe de postos Moisés…

-O quê? Uma virgem caiu do céu?

-Pois, foi o que eu disse…

-Sr. Padre Silvério, não me leve a mal, mas isso é uma idiotice de todo o tamanho!

-Pois – disse o padre, chegando a cadeira para a frente.

-Sr. Padre, aqui não há virgens a caírem do céu, está-me a entender? O que tenho é uma mulher de identidade desconhecida, de origem desconhecida, numa situação de acidente ou incidente ainda por determinar! Fiz-me entender ou tenho de repetir? – gritou Moisés, ultrapassando os limites do tom de voz para se dirigir ao padre Silvério.

-Eu entendi - disse o padre, serenamente – O que tenho a dizer é que sim!

-Sim?

-Sim!

-Sim o quê? Mau! Ai, os meus nervos! Sim o quê, senhor padre Silvério?

-Sim, é verdade que o senhor tem uma mulher desconhecida, de origem desconhecida, vítima de um acidente ainda por determinar. Ou tenho de repetir as suas próprias palavras?

-Não entendo – disse Moisés, levantando-se.

-Sr. Chefe de Posto Moisés, não vim aqui para lhe pedir nada, mas é verdade que seria alvo do meu apreço se pudesse repetir publicamente o que acabou de me dizer, com alguma urgência.

-Como?

-Não lhe estou a pedir nada a não ser que não se esqueça que é exactamente isso que acabou de dizer que é a verdade. Sem tirar, nem pôr.

-Sr. Padre, explique-se já!

-Sr. Moisés, eu nunca escondi o respeito que tenho por si e pelo seu trabalho aqui no Golungo Alto. Veja que eu sempre dei fé que, nestes tempos de guerra, um chefe de posto é mais importante que um comandante regional.

-Onde é que o senhor padre quer chegar? – disse Moisés, pausadamente, para evitar um grito.

-Quero dizer que sim! Que sim, homem! Que ninguém na minha paróquia me entra aos gritos pela Igreja a dizer que uma virgem caiu do céu! Está a entender ou ofende-se se eu repetir? – o padre Silvério levantou-se.

-Bem, sr. Moisés, estou de saída. Deixe só que agradeça já pelo que está a fazer pela comunidade.

Moisés estava em pé, de boca aberta.

-Sabe que o Golungo Alto luta com uma série de dificuldades, porém, nenhuma delas relacionada com a fé. A guerra encarrega-se de trazer os desamparados à Palavra do Senhor e de Seu Filho, Jesus Cristo. Em Luanda, sabe-se, pululam novas igrejas que eu gosto de chamar “comerciais”, mas não quero adiantar-me sobre este assunto. Aqui, nestas paragens remotas, temos outros problemas, uns de origem africana, o feitiço; outras de origem na ignorância humana, o radicalismo. Sabe, tão bem quanto eu, que os convertidos são os mais radicais, tornando-se, até, numa ameaça para a comunidade. Não sei se o senhor Moisés olharia com bons olhos que esta mulher desconhecida, se tornasse alvo de romaria, de adoração…

Moisés estava atónito.

-Aproveito para me despedir e enviar os meus cumprimentos à senhora sua esposa, Dona Maria.

O padre Silvério saiu do posto da polícia com a mesma diligência com que entrou. A única diferença era a pequena multidão que agora o aguardava.

Uma onda de raiva paralisou o pensamento de Moisés por um segundo.

-Lopes, vai chamar o Dr. Chinguare! Diz-lhe que vai almoçar comigo ao quintal da Tia Antónia. Já!

-Sim, chefe.

-Arre, que já não como nada há dois dias!

*

Moisés entrou no quintal da Tia Antónia com passo acelerado e expressão de poucos amigos. No quintal encontrava-se muita gente, quase todos em pé.

Ao fundo estava a mesa destinada a Moisés.

-Bom dia, tia Antónia, o que se passa hoje? Tanta gente?

-Bom dia, filho, vieram ver o teu almoço com o doutor…

-Mau…

-Ya, filho, souberam que vinhas aqui resolver o caso da bruxa.

-Qual bruxa? – Moisés hesitou- Tia Antónia, se não os pode mandar embora, pelo menos diga-lhes que só vim almoçar e que não quero que me incomodem. Pode ser?

-Está bem, filho, fica sossegado. De qualquer maneira já sabíamos que isto ía acontecer, não é?

-Sabíamos?

-Sim, filho, já reparaste como as coisas andam? Ninguém mais fala kimbundu, ninguém mais faz oferendas nos seus mortos, ninguém pergunta nada no kimbanda… Agora só querem saber de guerra, roupas e carros.

-Está bem, tia Antónia, já percebi. Não se preocupe, tudo vai correr bem.

-Sim, filho, eu sei, nem precisas dizer. Mas pensa bem se sabes onde estás a mexer…

-Sei, acredite.

-Você é quem sabe… - Antónia entrou na cozinha.

Moisés ainda ouviu ela a dizer a Francisca:

-Ninguém liga nos mais velhos, depois se admiram das bruxas estarem a voltar para matar as nossas crianças e o nosso gado…

(continua)