O dia em que uma mulher caiu do céu 2

O chefe de posto Moisés tinha por hábito acordar cedo. Dava uma pequena volta pelo seu quintal e voltava a casa para um verdadeiro mata-bicho angolano. Às vezes comia uns bifinhos bem temperados, outras um churrasquito de galinha cabire, daquelas pequeninas que até os ossos se roem, um copito de vinho, só para honrar os antepassados, dizia ele, um café de cafeteira e o um arroto à chefe de família, cargo que acumulava com o de chefe de posto.

Naquele dia, o dia a seguir ao dia em que caiu uma mulher do céu, Moisés atrasou-se pelo quintal e, pela primeira vez em anos, a sua esposa, Maria, teve de o chamar para a mesa.

-O que se passa, homem, parece que viste um fantasma…

-Não, não é nada, é só uma coisa lá do serviço – disse, sem querer adiantar conversa.

-Tu é que estás bem, és polícia, porque pelo que ouvi não vem aí boa coisa.

-Então diz lá o que ouviste.

-Nada, só aquilo que aconteceu ontem, da mulher que caiu do céu.

-Mas, ó Maria, diz-me lá, qual mulher é que caiu do céu? – rosnou já impaciente.

-Olha, não sei e escusas de começar já aos berros. Eu só sei é que é a segunda que eu tenho conhecimento.

-Como?

-Sim, a segunda. O meu pai sempre me falou do que aconteceu aqui quando eu era miúda. É só uma história, mas também é certo que ainda não ouvi ninguém negar.

Moisés encostou-se melhor na cadeira, afastou o prato e disse:

-Então conta lá o quê que o teu paizinho te contou, se faz favor.

-Nada de importante, só que dizem que, às vezes, Deus engana-se e há gente que morre por engano e, quando ele se apercebe do erro, as manda de volta, assim como estão, para a terra.

-Mas para isso era preciso que, quando as pessoas morressem, o corpo fosse inteirinho para o céu! Não achas? - gritou Moisés - Epá, vou é mas’é trabalhar, pá! Chatice, pá!

-Querido- disse a mulher, correndo atrás dele - Os miúdos hoje podem ir à escola?

-Hã? Como?

-Se os miúdos podem ir à escola?

-E porque não?

-Querido, com mulheres a caírem do céu, acho que é melhor eles ficarem em casa.

-Ai, os meus nervos, os meus nervos.

*

O chefe de posto Moisés dirigiu-se enervado para o seu jipe Land-Rover da polícia. O seu ordenança Lopes já se encontrava junto à viatura.

-Bom dia, chefe.

-Bom dia, Lopes, já por aqui?

-Sim, chefe. A situação agravou-se gravemente durante a noite.

-Não me digas que a mulher morreu…

-Não, chefe, ela está bem, até aceitou comer e beber água. O chefe é que está metido em maus lençóis!

-Pronto, já começa! Mas é o quê agora?

-Um dos sobas veio falar com o chefe e está bem nervoso. Não é o soba grande Paulo Keta, nem o Kapalandanda, mas é importante… acho que conheceu o seu avô…

-Ah, o soba Kijila. Vamos lá ver o que ele quer.

O soba esperava Moisés à entrada do posto da polícia.

Vinha vestido normalmente com a farda caqui de soba e o respectivo chapéu. Na mão direita trazia o cajado de soba. Assim já seriam dois de chapéu, mas só um trazia cajado. A conversa iria ser franca.

-Bom, mais velho, então o que o trás por aqui? – disse Moisés enquanto convidava o soba a sentar-se, com um gesto. A pequena sala de chefe de posto acomodava somente uma secretária e duas cadeiras, pelo que Lopes e um dos acompanhantes do soba tiveram de ficar de pé.

-Bom dia, filho, como está você e a sua família?

-Tudo bem, obrigado, pai, e a sua família e a lavra?

-Tudo bem, tudo…

-Então, mais velho, diga lá em quê que o posso ajudar. – disse Moisés com um pouco mais de simpatia do que seria necessário.

-Filho, você sabe que conheci o seu pai, não sabe?

-Sei, mais velho, sei – Moisés encostou-se na cadeira com a expressão de que permitira o início de um processo longo.

-Sabes que também conheci teu avô, um homem de grande valor, que sempre respeitou os mais velhos, as mais velhas, e tudo que ele soubesse que pertencia aos outros, como água, lavras e caça. O teu avô procurou-me há muito tempo para pedir conselho de um velho, sobre a tua pessoa, depois da morte do teu pai na guerra com o colono. Disse-lhe que mandar-te para Luanda estudar, tão novo, só com a altura de meio milho, corria o risco de tu perderes a tradição, esqueceres os hábitos e o respeito dos mais velhos.

Moisés começou a ficar impaciente.

O soba continuou:

-Foste para a escola, para a tropa, para a polícia. Viajaste no estrangeiro, comeste a comida dos brancos. Casaste com uma mulher que tu escolheste sozinho, sem perguntar dos mais velhos, se ela tinha o sangue do diabo Bakongo nas veias. Todas essas coisas aconteceram mesmo e, você sabe, nunca te chamei a exigir o meu respeito, não é verdade?

-É verdade, pai, mas o que foi que eu fiz?

-Então, você mesmo, chefe de posto, sabendo da queda do céu de um demónio, à luz do dia, não manda avisar quem mais sabe? Hã, onde foi que você viste isso? Não manda chamar quem pode proteger o povo? Me tiraste a competência? Queres o meu chapéu de soba comigo em vida?

-Bem, mais velho, não é bem assim…

-Shhhh, estou a falar! Agora me tiras a palavra também? Não te esqueças que tudo o que tens eu te dei! O ar que te põe vivo é meu! A água que te lava é minha! Os filhos que tens eu é que puxei! – gritou, levantando o cajado bem acima do tampo da mesa.

-Desculpe, pai, desculpe.

-Assim, mesmo que perdemos o tempo de luz de ontem, venho buscar o demónio para lavar e mandar para lá de onde saiu.

-Como?

-Vou levar o demónio para o meu Kimbo, tratar e mandar embora! Estás surdo, você?

-Kota, isso não vai ser possível. Isto é um processo policial com investigação em curso. Agradeço a sua preocupação, mas não vai ser possível.

-E eu te pedi alguma coisa, kandengue? Eu estou a dizer que VOU levar o demónio agora!

-O máximo que posso fazer é deixá-lo falar com ela cinco minutos, não mais do que isso.

A discussão durou mais uma hora até que o velho soba Kijila desistiu e voltou para o kimbo, sem o seu demónio, praguejando que dava medo, lançado pragas e feitiço a tudo e todos com quem se cruzava.

-Chefe, esse kota dá trabalho…

-Lopes, lava a boca. Esse homem é santo, ouviste?

O chefe de posto Moisés estava exausto. Aquela conversa exigira mais auto-controle do que ele estava habituado a ter.

-Lopes, vai chamar o Dr. Chinguare e um enfermeiro. Diz-lhe que venha rápido, que é urgente.

-O chefe quer mandar mudar os pensos da vítima? Está aí o enfermeiro, pode fazer isso.

-Não, Lopes, quero que o doutor faça um exame.

-Qual exame, chefe?

-Quero que o doutor determine se esta mulher foi violada ou não!

Lopes deu um salto para trás.

-Áka, chefe, quem mesmo ía aceitar violar uma demónio tão velha? Se fosse uma demónio catorzinha, toda gostosa, até pensava que sim, mas esta…- e cuspiu para o chão.

-Lopes, desapareça-me da frente – gritou Moisés, levantando-se, ameaçador – Chama o doutor já!!!

O doutor Chinguare não demorou mais do que trinta minutos para fazer o exame. Saiu da sala onde se encontrava a vitima e foi na direcção do chefe de posto.

-Então, senhor doutor, fez o exame?

-Fiz, Sr. Moisés. Quando me chamou pensei que já fosse tarde para determinar se ela havia sido violada ou não, mas agora tenho a certeza que não.

-Tem a certeza absoluta? Mesmo tendo passando tantas horas depois do sucedido.

-Sim, tenho a certeza absoluta.

-Porque…?

-Porque esta mulher ainda é virgem!

(continua)