O dia em que uma mulher caiu do céu

O dia em que uma mulher caiu do céu

Na província angolana do Kwanza Norte existe uma vila chamada Golungo Alto. A vila não tem muitos habitantes, mas muita gente passa por lá a caminho de N’Dalantando, antiga Salazar. É uma vila modesta e sem grandes atractivos.

O chefe de posto do Golungo Alto, que atendia ao nome de, note-se bem, chefe de posto Moisés, fazia as suas refeições no aclamado quintal da tia Antónia. A ementa era perfeita para o palato exigente das gentes da vila: Funge de peito alto, todos os dias da semana. Não havia dúvidas, nem reclamações. Vinha gente de motorizada, a pé, do Lucala, Cazengo, e porque não dizer, até de Cambambe, só para apreciarem o funge da tia Antónia, e perguntavam a modos de cumprimentar:

-Tia Antónia, qual é o almoço hoje?

-Hoje, filho, tem funge!

-Qual?

-De peito alto!

O chefe de posto Moisés era sempre o primeiro a chegar. Como era a figura mais patenteada da vila, fazia questão de se descalçar, muito do qual para mostrar à tia Antónia que estava à vontade, mas também para explicar que quem mandava ali era ele.

Ele não pedia muito comparado com outros chefes de posto de localidades vizinhas. Queria a sua mesa distante da porta, queria ser servido pela Francisca, por motivos que não são para aqui chamados ao caso e, claro está, queria o seu vinho escondido debaixo da mesa para evitar comentários ou visitas inesperadas. Em cima da mesa somente um jarro de água. Sem gelo, que ele não era homem de pedir milagres, muito menos no Golungo Alto, em 1998.

Estava o nosso chefe de posto, de nome, não esquecer, chefe de posto Moisés, a iniciar mais um inesperado funge de peito alto, quando chega em alvoroço o seu ordenança Lopes.

-Chefe de posto Moisés, o praça Lopes apresenta-se em respeito e serviço!

-Lopes, Lopes, estás a esquecer-te da regra número um. Não me incomodem durante o almoço…

-Certo, chefe! Quer dizer, não, chefe, não me esqueci, mas o chefe tem de comparecer já junto ao posto médico!

-Epá, Lopes, estou a almoçar, pá!

-Sim, chefe, eu sei chefe, mas se não vier já vai ser pior para si!

-Ó Lopes, perdeste a noção ou quê?

-Não, chefe, desculpe, chefe, o que quero dizer é que se o chefe não vai, ninguém vai perceber porquê que o próprio chefe não estava lá no local do acontecimento, do sucedido.

-Qual sucedido, pá? Ó Lopes, você está a dar-me cabo dos nervos…- gritou o chefe de posto.

-Chefe, oiça com atenção, sem querer faltar com o respeito, o chefe tem de vir já!

-Aonde, homem, aonde?

-Junto do posto médico.

-Mas o quê que é, pá?

-Chefe, com o devido respeito, uma mulher caiu do céu!

O quintal da tia Antónia ficou em silêncio por um segundo, tentando todos confirmar com os olhos aquilo que os ouvidos acabaram de escutar.

A gargalhada geral ouviu-se até ao fundo da rua.

O chefe de posto Moisés, acompanhado a um seguro passo atrasado pelo seu ordenança, chegou ao posto médico, onde o esperava uma multidão respeitosamente assanhada.

-O chefe chegou!!! O chefe chegou!!!

Moisés sabia que a sua competência estava a ser medida pelo seu olhar introspectivo, pela mão na coronha da pistola, pelo silêncio inteligente.

-Lopes, venha cá! – disse, num tom rude.

-Quero um perímetro útil de 50 metros. Vá chamar já todos os efectivos disponíveis ao posto. Quero o nome das testemunhas e uma sala dentro do posto médico a que passaremos a chamar de Posto Avançado de Investigação. Prossiga.

-Chefe…?

-Peri… quê?

-Lopes…

-Ya, chefe, vou afastar o pessoal e o resto dos camaradas é para virem já!!!

-Lopes, você está a dar-me cabo dos nervos…

Moisés aproximou-se finalmente da cena, do sucedido.

Uma mulher que aparentava 50 anos, de raça negra, tendo estatura mediana, completamente nua, estava estatelada de barriga para baixo, no meio da rua. Tinha ossos fracturados nos braços e pernas, sangrava levemente da boca e, por incrível que pareça, estava viva.

A respiração era ligeira, mas ofegante, os olhos inflamados e sem brilho.

-Lopes, mede-me a distância entre a vítima e o edifício.

-Edifício, chefe?

Lopes olhou para a pequena casota a que chamavam posto médico, com uma porta de entrada e duas minúsculas salas, uma de cada lado do hall de entrada.

-Lopes…O posto, o posto, pá!

Em poucos segundos Lopes regressa com a medição: 25 metros.

Moisés deu uns passos atrás e suspendeu-se em bicos dos pés, olhando no sentido contrário. Rodou sobre si e afirmou, baixinho:

-25 metros à distância de nada. Lopes, vê lá se vês sangue até ao fundo da rua, nas pedras, na estrada, onde for, vá lá, leva o tempo que quiseres.

-Sim, chefe! – Lopes afastou-se.

Moisés debruçou-se sobre a vítima, sentiu o seu pulso fraco, reparou mais de perto nos ossos quebrados sob a pele, o sangue de um vermelho escuro a deslizar em fio pela boca, levemente.

-Consegue ouvir-me? Minha senhora, consegue falar?

A mulher continuava em silêncio.

-Chefe, nada, nem sangue nem quê! Mas estou aqui a pensar, chefe, das duas uma, Ou caiu de um carro em andamento ou caiu do céu!

-Lopes, você está aqui para ajudar, ouviu? Para ajudar!

Eram já 16 horas e não havia notícia de carros desconhecidos que houvessem passado pela vila naquela manhã. O chefe de posto foi pessoalmente verificar se havia algum vestígio que indicasse, pelo menos, a direcção que a mulher pudesse ter vindo. A possibilidade de ter caído de uma motorizada era verdadeira, mas ninguém deixaria de reparar numa motorizada com uma mulher nua atrás.

-Chefe, será que ela tem documentos?

-Lopes- Moisés tentou não gritar- ela está completamente nua!

-Sim, chefe, isso também é mesmo verdade…

-Vamos raciocinar aqui. Vá, levem-na para dentro com cuidado e tapem-na com um lençol. Lopes, chama toda a gente que estava no posto médico e imediações na hora do sucedido, da ocorrência, digo. Vou interrogá-los lá dentro. Um de cada vez.

-Sim, chefe, só o enfermeiro de serviço, mas não estava no posto. Mais ninguém.

-Mau, estava ou não estava?

-Estava de serviço, mas não estava aqui, por isso é a única testemunha, mas não estava aqui.

-Lopes…

-Sim, chefe, não estava aqui, pois, já percebi. Desculpe, chefe.

-Alguém a viu cair?

-Sim e não!

-Lopes…

-Chefe, uns dizem que ouviram um barulho, outros só a viram no ar…

-Chama-os já.

Moisés passou o resto da tarde e parte da noite a ouvir relatos absurdos sobre o acontecimento, até de pessoas que confessaram, à partida, que estavam ali só para dizer o que ouviram dizer.

-Bem, Lopes, a vitima está em vida, os testemunhos em registo, amanhã daremos seguimento ao processo.

-Sim, chefe. Posso fazer uma pergunta, chefe?

-Diz lá, Lopes.

-O chefe acha que ela caiu mesmo do céu?

-Não, Lopes, não acho. Agora vai descansar. Até amanhã

-Até amanhã, chefe.

(continua)