EU THANATOS

Após longo período sabático sem idas a Porto Alegre vi-me na contingência de para lá viajar por alguns poucos dias. Estava exageradamente enfadado com as condições do corte de meus cabelos. Somente Sid, amigo de mais de décadas, aclamado o mais competente cabeleireiro do Sul do Brasil, com sua tesoura de ouro, shampoos e condicionadores encomendados diretamente a Mestre Ravengaard, guardião único do segredo e da magia das aromáticas ervas por ele cultivadas nos campos de Grasse, nos Alpes Marítimos, na Costa Azul francesa, seria a solução para o que então me afligia.

A ida ao Mercado Público, no entanto, se fazia imperiosa. Destino: Banca do Holandês; Camembert, Gorgonzola, Morbier e Saint-Paulin eram queijos imprescindíveis ao meu paladar, não sem antes a merecida pausa nas mesas da Banca 40 para a degustação de uma artisticamente decorada taça de Bomba Royal.

Por conspirações que o destino tem o condão de fazer prosperar fora exatamente lá que encontrei um alvoroçado, impaciente e frenético Sid. Malgrado meu esforço, ele sequer escutava minhas queixas. Limitou-se a puxar-me pelas mãos e rumamos ao Espaço S.

Uma vez ali, deixou-me aos cuidados das assistentes, pois, como ele próprio dissera, precisava se engalanar para o “Cocktail de l’Adieu” que Mari del C. ofereceria à mais fina nata alegre-portense.

Mari del C. fora minha colega durante os cinco anos de Faculdade. Jovem mulher de rara e delicada beleza, ela lembrava a mais divina das deusas gregas.

As duas assistentes de Sid estavam em meio às incumbências que lhes foram determinadas quando o coiffeur, disparando escada abaixo, instigou a mim e as auxiliares a lhe acompanhar. Sid desconsiderou os veementes protestos acerca de meu estrambótico visual, garantindo-me que quem menos se importaria ante a bizarrice estampada seria a própria Mari del C. Eu adivinhava o inevitável vexame que me seria infligido e o mico que via de consequência haveria de pagar: uma das laterais do couro cabeludo exibia trilhas depiladas que lembravam símbolos celtas, enquanto na outra sobreviviam os pelos do corte que tanto me desagradava.

O local do insólito evento, o amplo salão de festas de um luxuoso triplex na Avenida Nilo Peçanha, mostrava-se sobriamente iluminado por media luz. A “Sonata para Violino e Piano ‘A Primavera’, op. 24, nº 5, 1º movimento” de Beethoven combinava com as conversas em surdina dos mais de duzentos convivas reunidos em pequenos grupos. Junto à parede principal daquele espaço, ali sim, com os fachos de luz dos spots a ela direcionados, repousava sobre um riquíssimo catafalco, totalmente coberto por rubro veludo em cujas extremidades se divisavam franjas de ouro, uma pálida, frágil e quebrantável, porém enigmaticamente jovem, trajando uma longa túnica de cetim na cor água-marinha que lhe envolvia até os pés desnudos, a bela Mari del C . À sua cabeceira três convidadas entabulavam sussurrante conversação.

Naquele instante, doze garçons a rigor ofereciam aos presentes cálices de Moet & Chandon Dom Perignon Charles & Diana 1961. A Sonata subitamente emudeceu e Mari del C. sussurrou, — “A la santé!”.

Na parede oposta ao catafalco a imensa tela de um home theater, agora com o volume mais alto, exibia Sinatra em magistral interpretação de “My Way”. Os convidados, atentos à canção e aos brindes com o raríssimo champanhe, sequer perceberam que Mari del C. com a destra acionara um pequeno botão vermelho ao lado de seu corpo desligando os aparelhos ocultos sob o estrado, cujas cânulas, através de orifícios artificiais criados cirurgicamente entre a espátula, alcançavam seus pulmões, onde há dois meses se iniciara o processo de um tumor metástico.

Atônito e sem nada entender, dirigi-me à mulher que me parecera ser uma das assistentes de Sid e perguntei por ele. Ela me encarou como se fora eu um extraterrestre e, entre espantada e divertida, me diz que o cabeleireiro morrera assassinado há quatro anos.

Os convivas, alegres, exigiam dos garçons novos cálices de champanhe.

Mari del C. parecia envolta em plácidos sonhos.

Como se houvesse deixado os labirintos de um pesadelo despertei sobre a mesa da Banca 40 tendo à minha frente a taça que há pouco ostentava uma artística Bomba Royal e agora exibia, imersos sob a mistura derretida do sorvete napolitano e de nata, nacos de banana, maçã, mamão e laranja...