Nome de Anjo

 

 

Na primeira vez que me encontrei com Gabi, ela não deveria ter mais que dois anos: uma criança linda de olhos verdes e brilhantes, cabelos cacheados e dourados. Por um instante, penso que me olhou nos olhos. Seu olhar cruzou com o meu, tenho certeza.

Estava com sua mãe em frente à escola. Várias crianças esperavam por seus pais; usava um uniforme escolar, saias rodadas, meias até os joelhos e a camisa branca com emblema da escolinha infantil.

Eu estava do outro lado da rua esperando a mãe de seu amiguinho, que eu iria acompanhar até em casa. E, mesmo distante de seus olhos infantis, me observou e analisou, sabendo, mesmo com sua pouca idade, quem eu era e o que estava fazendo ali. Eu, que nunca senti nada, nunca tive sentimentos por ninguém em minhas visitas diárias, sempre frias e objetivas, naquele momento senti uma vontade de conhecê-la, de conversar, pegá-la no colo, acariciar seus cabelos. Pensei: "estou louco, só pode, não posso estar em perfeitas condições, eu sou um ser sem sentimentos. Estou acima de coisas mundanas."

Depois desse nosso “encontro” passei a observá-la mais atentamente. Todos os dias a via de longe, sempre com cuidado para ser invisível aos seus olhos; observava minha amiga unilateral à distância tentando me afastar, pois me sentia um obsessor. Mas a vontade de vê-la era mais forte que eu. Aquela pessoinha de cabelos cacheados tinha uma luz à sua volta. Eu poderia permanecer uma eternidade apenas observando sua bondade.

 

****

Os anos se passaram; Gabi cresceu, foi para a escola primária, se tornou uma linda menina, inteligente, alegre, carinhosa com seus pais, professores e com todos à sua volta.

Quando completou dezessete anos, no dia de sua formatura do segundo grau, talvez por descuido meu ou por pura vontade que me visse novamente, deixei minha invisibilidade transparecer e Gabi falou comigo. Nesta ocasião eu estava com o pai de sua amiga; durante aquele ano de 1939 as visitas às famílias foram mais frequentes. Anos difíceis sucederam-se depois. A visita da vez era direcionada aos familiares do senhor Jonas. Então, minha menina falou comigo.

— Como você se chama? Lembro-me de você, às vezes te observo na casa de alguns conhecidos meus. — Gabi ainda preservava as características da menina que encontrei havia alguns anos em frente à escolinha. Por um segundo não soube o que responder. "Quem seria eu? Um desconhecido, um viajante ou um mensageiro?"

— Não sou ninguém importante — E a deixei ali, não dando margens a mais perguntas que não queria ou não poderia responder.

Mas, como estava dizendo, aquele ano de 1939, em que visitei o senhor Jonas, havia sido de trabalho intenso, com a explosão da Segunda Guerra Mundial. Não pude acompanhar minha “amiga” de perto; sempre que a via, eram momentos furtivos e rápidos. Os anos que se seguiram, continuaram intensos em meu “trabalho”. Mas, sempre que tinha uma oportunidade, me fazia presente, como um guardião. Meus pensamentos constantemente estavam perto da menina de cachos dourados e olhos verdes.

Finalmente, obtive alívio em meu trabalho no ano de 1945, e voltei a ficar perto dela. Agora não mais uma menina, Gabi se tornara uma mulher, uma profissional perfeita; sinto um orgulho imenso de sua capacidade de empatia. Aliás, foi com seu jeito meigo e carinhoso que aprendi a ser mais delicado em minhas visitas diárias.

A vida de Gabi continuou e eu sempre acompanhando seus passos, talvez porque sua profissão exigisse minha constante presença ou porque simplesmente queria estar perto. Ver seu amadurecimento, sentir sua presença; penso que ela sempre me sentia por perto. Como sei? Ah! Ela dava um jeito de se comunicar comigo, pequenas atitudes suas me davam essa certeza.

Certo dia cheguei para uma visita e meu cliente disse:

— Dra. Gabriela deixou um recado para o senhor. — Como essa diaba sabia que eu visitaria o senhor Alfredo?

— Dra. Gabriela pediu para você cuidar bem de mim, que sou um paciente especial.

— Senhor Alfredo, todos os meus clientes são especiais para mim — respondi de forma doce (pelo menos tentei) para o senhorzinho de mais de noventa anos, que se encontrava em um leito de hospital há mais de trinta dias. — O senhor pode me acompanhar?

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O tempo para mim não corre com a mesma velocidade que corre para você; tenho todo o tempo do mundo, sou como o vento, estou em todos os lugares. As coisas que a maioria das pessoas apreciam, como a Lua, as estrelas, uma paisagem, um dia de chuva ou um dia de Sol, não me trazem o mesmo prazer. Mas quando Gabi está por perto, consigo sentir uma leve vontade de sorrir, de olhar o céu. Às vezes me pergunto: o que ela vê de tão especial naquelas estrelas? Sou capaz de ficar ao seu lado por horas observando-a contemplar o céu noturno. Só para desfrutar de sua companhia.

Na noite em que fiz a visita para sua mãe, ela estava lá, olhando o céu. E eu, curioso, me peguei também admirando; nessa noite em especial ela falou novamente comigo.

— Cuida bem dela para mim. Se ela se sentir triste, sozinha, diga que em breve irei me encontrar com ela. Talvez não tão breve, mas um dia irei ao seu encontro. — Não houve tempo de resposta: Gabi me deixou ali, impressionado com sua capacidade de ver através dos olhos; ela não me via com medo ou raiva, não me culpava por coisas que eu não tinha o poder de mudar.

Era tão doce, conhecia a essência do ser humano, via as pessoas sem máscara, conhecia seus pensamentos, sabia avaliar as atitudes dos outros como ninguém. Nunca houve e nem haverá alguém como Gabriela.

Em todos esses anos, ela foi uma ponte que me ligou à humanidade, a qual pensei ter perdido há anos. Ela me conhecia, me entendia e me perdoava por ser quem sou.

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Hoje chegou o dia de visitá-la; sua casa está cheia de amigos, seus filhos estão todos aqui; seus netos: sim, Gabi tem cinco netos, duas meninas e três meninos. Presenciei o nascimento de todos; Mille é a mais parecida com ela, cabelos iguais e olhos do mesmo tom de verde que sua mãe e avó. E parece que a espevitadinha tem o mesmo dom da vó, pois me olha, abre um sorriso, e sopra um beijo. Como pode, esse ser que parece uma cópia em miniatura de Gabi, me mandar um beijo? Sou o ser mais feio que existiu; era para ter medo, pavor e não ficar ali toda risonha ao lado de sua avó, jogando beijos ao vento para mim. Fico as observando por um instante e ambas cochicham no ouvido da outra, soltando gargalhadas felizes e trocando confidências.

Minha menina teve uma vida longa e feliz, realizou todos os sonhos e eu estive sempre presente em toda sua vida, longe e perto ao mesmo tempo. Em cada visita que fazia, me brindava com seu sorriso de compreensão, me tranquilizando e acalmando minha alma (se é que tenho uma).

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— Oi, pequena Gabi, hoje chegou seu dia de visita, como está se sentindo?

— Meu amigo, pensei que não viria mais; estou cansada de te esperar. Estava aguardando por você já há algum tempo. Meus olhos cansados dos anos não conseguiam mais ver quando fazia as visitas por aqui. Todos os dias nesses últimos anos pensava e desejava: hoje ele virá me buscar; o dia chegava ao fim e nada de você. Nada de seu perfume; nunca te falei, mas você tem um perfume delicioso que transmite paz.

— Querida, eu que não me deixei ser visto por você; tive medo de que com o tempo não me visse mais com os mesmos olhos.

— Serás sempre o meu anjo protetor; quem disse que a morte é feia? Você é a criatura mais linda que meus olhos já tiveram a alegria de ver. E será a coisa mais linda que meus olhos verão nessa vida.

"Como pode minha menina achar que sou um anjo protetor? Sou anjo sim, mas não protetor".

 

 

 

 

Juliana Duarte Honorato
Enviado por Juliana Duarte Honorato em 04/10/2023
Reeditado em 06/10/2023
Código do texto: T7901201
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