Olhar imortal

(Inspirado no conto "O retrato oval" de Edgar Allan Poe)

Adentrei no casarão ao cair da noite, imediatamente, vi-me rodeada de inúmeros quadros até encontrar o atelier claustrofóbico, pouco iluminado, sujo e triste. Observei cada detalhe do cômodo, enquanto caminhava pensando que o local de criação de um artista, deveria ser um lugar mais alegre, sem entender como minha companhia poderia ser trocada por toda aquela tristeza. Meu amado pintor adormecera segurando alguns pincéis, sentado numa poltrona, que era o único móvel do ambiente, além de um banco de madeira e um cavalete suportando uma tela em branco.

Decidida a aceitar a proposta de Frederico fui usando um vestido de estilo Vitoriano na cor lilás com uma peça bordada, em tom mais escuro, passando pela lateral dos braços deixando meus ombros a mostra, com um grande laço na parte de trás, na altura da cintura e o espartilho amarrado com força valorizando meu colo. Meus cabelos foram divididos ao meio, com os cachos largos e marcados suspensos, emoldurando meu rosto de traços delicados com apenas um colorido nos lábios. Quando ele despertou, como que tocado pela intuição, e me viu, pude sentir o prazer que estava lhe proporcionado ao atender seu pedido.

Frederico desejava me eternizar numa obra digna de aclamações. Entre tantas donzelas, ele sonhava em ter-me como sua modelo. Dizia, envolvendo-me em palavras doces, que queria registrar para todo o sempre, a minha beleza encantadora para que, num futuro distante, as pessoas pudessem, através de sua arte, olhar bem dentro dos meus olhos e reconhecerem, com clareza, toda a doçura e a força de uma mulher, que com o brilho envolvente da juventude conseguiu, sem maiores esforços, inspirar um pobre artista.

Ainda assim, eu sentia-me traída! Não conseguia ignorar a força muito superior que se interpunha em nosso convívio. Era um poder que resistia às minhas carícias, aos meus apelas, fazendo-me sentir distante do homem que amo com tanta devoção. Eu lutava constantemente para manter acesa a chama de um amor, quase platônico e débil.

Enquanto ele dizia que ninguém nesse mundo, por mais que tentasse, poderia fazê-lo mais feliz do que eu, era perceptível o regozijo que sentia a cada obra que dava vida. Era um amor tão intenso que, se largasse tudo para ficar comigo, faltaria uma parte que, certamente, ficaria impregnada nos pincéis, tintas, nas paredes,... Eu tinha uma rival invisível e possessiva que nos mantinha separados e de nada me servia ser a mulher amada se não o tinha dedicando-me atenção e companheirismo. Eu devia, então, fechar os olhos e aceitar as migalhas desse amor com resignação? Sim... Eu faria por ele tanto quanto me pedisse. Eu ficaria naquela saleta, de bom grado, todo o tempo necessário para realizar sua obra. Dando-me por satisfeita sabendo que, ao menos durante aquele período, ele teria olhos somente para mim.

Sentei-me na poltrona, acomodei-me e ele posicionou meu corpo e rosto na posição em que queria me retratar na tela. Depois colocou os candelabros ao meu redor e também próximo do banco de madeira em que se sentou diante do cavalete, dando início à sua obra. Porém, com o passar dos dias presa, naquele ambiente frio, com pouca ventilação, por horas a fio sem alimentação adequada e dormindo pouco, fui acometida pela peste branca. Não me sentia bem, o corpo já parecia não obedecer aos meus comandos e, por muitas vezes, a vertigem só não me dominou porque fui sustentada pelo olhar possessivo que Frederico lançava sobre mim. Ele precisava de silêncio e eu esforçava-me ao máximo para não tossir o tempo todo, evitando sair da posição ao levar o lenço até a boca para aparar o sangue, até que já não pude mais segurar e soltei meu corpo, quase caindo da poltrona. Quando percebeu, Frederico veio, prontamente, me amparar pedindo que eu aguentasse um pouco mais... Por ele... Pela arte!

Eu havia dado a ele a maior de todas as provas de amor. Consegui suportar muito mais tempo do que imaginava e faltando apenas os últimos retoques, eu o encorajei a terminar. Então, com sua ajuda, posicionei-me novamente, tentando manter a postura. Ele voltou para a tela e não notou quando perdi os sentidos novamente.

Após a última pincelada, Frederico havia concluído sua obra-prima. Levantou-se do banco, afastou-se um pouco e contemplou, extasiado, por um minuto até que explodiu afirmando: — Isso é a própria vida!... Deus, é a vida mesmo!

Virou o cavalete com o quadro já pronto em direção à sua esposa e encontrou Justina recostada na poltrona, pálida, serena, morta e desabou num choro descontrolado agarrado ao corpo, sem conseguir desgrudar seus olhos dos olhos retratados na pintura que, agora, pareciam julgá-lo até que ele próprio perecesse.

O retrato daquela jovem no despertar da feminilidade, que guarda sua própria alma tão bem captada pelo homem a quem tanto amou, encontra-se hoje com uma moldura dourada, em formato oval, numa galeria de artes onde pode ser apreciada, provocando a imaginação com seu belo e discreto sorriso, e perseguindo os admiradores com o seu olhar imortal.

Hellen Bravo
Enviado por Hellen Bravo em 14/08/2023
Código do texto: T7861176
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