A sobrevivente

Anica acompanhou nossa família até a praia, mas declinou o convite para cair n'água. Sentou-se muito circunspecta sob um guarda-sol, um livro nas mãos.

- Quem vem de saia longa e blusa de mangas compridas para a praia? - Ironizou Carla, depois que emergimos das ondas após um mergulho.

- Anica tem um problema, Carla. Não usa essas roupas por modéstia ou fanatismo religioso.

- Que tipo de problema? - Quis saber Carla, enquanto nos estendíamos numa esteira de praia sob o sol.

- Queimaduras. Anica escapou de morrer num incêndio quando era adolescente... esconde as marcas o mais que pode.

- Que história terrível - Carla lançou um olhar de pena para Anica, que parecia entretida com o livro e estava longe demais para ouvir nossa conversa. - E os pais dela?

- Já morreram, mas não sei se foi nesse incêndio - desconversei.

Na verdade, eu bem o sabia, os pais de Anica não haviam morrido em nenhum incêndio, mas de velhice. E as marcas de queimaduras que ela tinha por todo o corpo, não haviam sido provocados por nenhum incêndio, mas no dia em que ela fora amarrada numa estaca e condenada a morrer na fogueira como bruxa, séculos atrás.

Felizmente para ela, a minha cerimônia de invocação a trouxera para o presente antes que os danos fossem irreversíveis. E para horror dos que a haviam condenado à morte, eu a substituíra na estaca por um demônio. Que como todos devem saber, são imunes ao fogo...

- [19-04-2022]