A correntinha dourada

A correntinha dourada

O amor por Adriana foi intenso, foi estranho, foi repentino e eterno. Não consigo explicar como é possível uma única imagem, um único nome, uma só pessoa, ser a razão do amanhecer e a angústia do anoitecer.

Adri — só eu a chamara desse jeito — surgiu do nada pelos corredores do colégio numa noite que parecia ser tão monótona como todas as outras. Principalmente quando eram aulas de Contabilidade. De repente ficamos, amamos, fugimos na imaginação, mas voltamos. Nosso amor possuía reciprocidade mútua. Porém, ela tinha um compromisso ainda de infância, que seria a razão do meu tormento e da minha solidão.

Era o ser mais gentil que conheci e que por um ano inteiro me pertenceu da forma mais egoísta, só minha. Ela se permitia a isto. Seu olhar era meu, sua ternura e sua voz rouca, que parecia um sussurro de súplica, eram minha plenitude. E eu não percebi.

Éramos de turnos diferentes e toda noite vinha à escola com a desculpa de fazer pesquisas para o magistério. Jamais esteve na biblioteca. Muitas vezes era eu quem encontrava uma razão qualquer para estar ali pela manhã. Vê-la, nem que por apenas um instante, significava minha realização.

Certa vez presenteei-a com uma correntinha de ouro, muito fininha, mas que reluzia naquele pescoço delicado, macio e aveludado. Era uma felicidade que rompia os limites do tempo e do espaço. E as horas se passaram.

À medida que o tempo passava, percebi uma mudança no jeito que me encarava. Parecia um pedido de socorro, a procura de uma resposta. Um socorro que não veio, uma resposta que não foi dada. Adri nunca exigiu nada.

Certa noite nos amamos e ela voltou sobre mim mesmo olhar de cobrança e finalmente disse que se nada diferente acontecesse teria que se casar.

O silêncio prevaleceu. Fui incapaz de responder o que tanto desejávamos.

O ano terminou, ela casou. Sumiu. A depressão a matou.

Meu silêncio levou Adriana, que não foi minha nem de mais ninguém. Foi também minha sepultura.

Quando pensamos que já enterramos as lembranças é que percebemos que não somos capazes de traçar nossa própria jornada. Que nosso passado encontra uma forma de nos assombrar.

Formei-me e dez anos depois e voltei àquele lugar

O portão se transformou numa passagem para as lembranças. Senti-me tonto, uma vertigem quase me tirou o equilíbrio.

Nesse instante, aquele mesmo olhar que cobrara uma resposta veio a tumultuar a minha cabeça.

Uma antiga funcionária me deu as boas vindas e comentou que as coisas estavam do mesmo jeito que sempre foram. Que só mudaram as pessoas e se sentia feliz por ter um pupilo agora mestre.

Minhas lembranças concordaram com ela. As coisas não mudaram mesmo.

Entrei em sala, cabisbaixo, angustiado, trêmulo. Aquele lugar me cobrava e me punia. Não conseguia organizar um discurso inicial ao grupo.

Levantei o olhar, ainda que perdido para um ponto qualquer do grupo, sem especificar nenhum deles. Mas não tive com não correr os olhos para o lugar que pertenceu a Adri. Nesse instante, o brilho intenso da luz sob uma sob um objeto ofuscou meus olhos e quando a visão se restabeleceu, lá estava ela. A correntinha de ouro no pescoço dela. No mesmo lugar.

— O que é isso? Indaguei comigo.

Arrumei uma desculpa qualquer e saí às pressas da sala. Fui ao banheiro e no caminho de volta a mesma funcionária me disse que eu estava tão branco que parecia ter visto o fantasma dela na imagem da filha. E vi mesmo.

Foi preciso um mês para eu trocar uma palavra com ela e isso só ocorreu porque eu interagia com todos e a evitava, até que ela perguntou se tinha nela alguma coisa que me incomodava, pois se sentia uma estranha comigo.

Fiquei sem respostas, como sempre.

Ficamos amigos, bons amigos. Um dia, mais precisamente em um dezesseis de agosto, encontrarei a correntinha de ouro no chão e logo imaginei a quem pertencia. Quando fui entregar, encontrei-a aos prantos no corredor.

Pegou-a, passou as mãos sobre as lágrimas, agradeceu rapidamente e saiu. Mas voltou logo em seguida com pedido de desculpas.

— Foi presente da minha mãe. Nunca falara sobre sua mãe e eu nunca perguntei, até que deixei escapar que dezesseis de agosto deveria ser um dia especial para ela.

Ela olhou nos meus olhos esperando uma resposta que, novamente, não veio. E não cobrou também.

Tal com a relação com a mãe, o tempo com a filha foi rápido demais. O fim do ano chegou.

Na última semana do ano fizemos uma festa de encerramento. Encontrei-a no canto do jardim, solitária e distante.

Sentei-me ao seu lado, ela pôs sua cabeça em meu ombro e chorou... Chorei. Choramos.

Cada lágrima que vem, tem sua razão de cair, caro leitor.

Perguntei se as dela eram de saudades da Adri. Estranhou a forma pela qual chamei a mãe dela. Levantou a cabeça e me fitou os olhos como se já soubesse de tudo e começou a falar roucamente, entre soluços.

— Minha mãe me deu essa corrente. É a única coisa que ficou de um pai biológico que nem sabe da minha existência e que nunca saberei quem é. Além das lembranças que não tive, do carinho que me foi cerceado ou do amigo que estou precisando agora. Minha mãe já me esperava quando se casou.

— Ainda bem que você existe. Completou. Teu ombro e ouvido me confortam de uma maneira que nunca senti. Nem mesmo por meu padrasto, que me cuida como filha, mas sei que não pertenço a ele, assim como minha mãe.

— Imagine você como ficou minha cabeça naquela hora, meu amigo, leitor.

— Foi aqui mesmo que ele a presenteou, Yasmin!?

A frase escapou de meus lábios como uma confissão, mas a ingenuidade de Yasmin não permitiu que percebesse.

— Será? Queria poder ter essa certeza e ser, no futuro, uma mulher tão segura quanto o senhor quer que eu seja.

— Ficar ao seu lado me conforta.

— É como se estivesse ao lado dele.

— Pudera que você fosse meu pai.

— O senhor diz certas coisas como se soubesse da minha vida inteira.

Ficamos ali até o final da festa

—Nunca mais vi Yasmin. Naquele dia, também morri. ( continua)

Jandersilva
Enviado por Jandersilva em 19/09/2021
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