Belle

"Rastejava sob minha pele, grossa de sujeira, áspera de tanto querer e esfregar-se em tudo que sugeria desejo. Como um inseto invasor que havia entendido só ser possível existir embaixo de camadas. Qualquer uma".

Ela surgiu como o sol que aponta sua abóboda avermelhada na beira do horizonte, durante o crepúsculo. E, assim como a estrela, foi assumindo seu protagonismo.

Foi deste modo que me apaixonei. Eu, e o mundo. Desgraçado e bendito mundo que sentiu o privilégio de tê-la. Ela era a pornografia do vício daqueles que estão presos as condições indeléveis de suas mazelas.

Quando entrou por aquela porta, de dobradiças que rangiam de maneira ensaiada, fui logo acometido pelo perfume cheio de escrúpulos do que é auspicioso, e danação, ao mesmo tempo. Como as bolas de gude disputadas com beligerância nas rinhas da infância. Ensaiei um canhestro, mas decidido, cartão de apresentação. Mais resoluto, só os garimpeiros que sabem ter o futuro liquefeito no fedor do presente. Ela respondeu com o sorriso que devia entregar a Deus, e zombar do Diabo. Em seus lábios pude enxergar as linhas de um horizonte em vertical luxúria. Neste instante, levado pelas emoções das memórias que temos do que não aconteceu, pude ver em cada macia e vermelha ranhura daqueles lábios as promessas dos trovadores, dos poetas, dos romancistas e dos pintores às suas amadas. Promessas que só se mantinham na certeza de não ter seus endereços alcançados.

Os dias acabavam e avançam, numa troca de papéis que garantia à plateia um lugar angustiante na esperança de que as palmas colocassem um fim àquela disputa. Pelo menos esta luta servia à renovada esperança de vê-la o mais celeremente possível. Um dia era uma aparição de gozo e jovialidade! Noutro, a sugestão de minutos passados no abismo sem amparo da fornicação! Já não me era possível acessar uma habilidade que fosse capaz de ancorar a bagunça que havia se tornado o organizado caos de meu espírito.

Lembrei do romancista e seu romance maldito. De um excerto onde ele descreve uma personagem que, ao ver Belle, entendo: "Curvas cosidas por fulgurantes trechos de carne, seu corpo cantava! E tinha a umidade da madrugada!"

Uma ponte de madeira seca que ao menor sinal de brisa solta farpas que vão parar debaixo das unhas aduncas de todas aquelas pessoas que clareiam o sorriso, mas não sabem rir. Uma condenação arbitrária, que fazia pilhéria da retórica pastosa dos defensores da flêuma, das certezas e convicções que amparavam aquele mundo cândido, sutil e seguro.

Era assim que me sentia, por mais que seja necessário alguma força para dar sentido a explicação.

Belle se recusava a sair do palco que eu havia erguido para suas apresentações. Dentro. Fora. Como Bukowski, no limite, na beira, do meu cérebro!

•••

O tempo transformou tudo em um passado mais do que presente. Hoje, após tantas estações que se perderam em previsões não cumpridas, Belle não mais se levanta da macia poltrona que comprei exclusivamente para que suas nádegas de deusa descansassem em meu coração.

Enquanto tomo meu café preto, pela manhã, junto às bolachas salgadas que dominam meu imaginário nutricional, sinto o cheiro que exalava dos poros, denunciados por Terêncio, saudáveis, róseos, da tez, pois pele tem os outros, de Belle. Um cheiro de bondade e "deseja-me" que haverá de subir em volutas para sempre em direção ao meu nariz viciado em amores que não se fazem.

MementoMori
Enviado por MementoMori em 27/08/2021
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