Memórias de um "mortandela"

Raio X de um “mortandela” e meritocracia

Passei fome que nem bode embarcado durante a Ditadura Militar, nenhum programa social. Meu pai, com medo e bêbado, nunca se lembrava que a gente comia. As músicas que falavam do Nordeste, da minha gente, era só tristeza e miséria, mas eu as ouvia. Comecei a trabalhar na construção civil aos seis anos; eram raros os dias em que eu não levava uma surra; eu era o protótipo do culpado por antecedência. Olhava as costelas saltadas dos meus irmãos, não sei se olhavam as minhas; mas eu pensava: “o Vietnan é aqui mesmo, só pode...”. Certo dia vi, em uma revista “O Cruzeiro”, uma foto da guerra do país supra citado, era um menino vietnamita bebendo a urina de um soldado americano, que mijava de uma sacada. Logo identifiquei-me na pele do miserável, embora, água fosse o que não faltasse em Guaíra, o Rio Paraná que o diria. Depois de uns dez ou doze anos de fome, frio, humilhações diversas e espancamentos, tive que sair de casa. Queria ser engenheiro civil. Fui para S. Paulo. Como é que vou ser engenheiro se, morando em porão de edifícios, trabalhando dez horas por dia e comendo mal? Não sabia sequer como ir à escola na metrópole. Tornei-me, apenas e tão somente, um técnico em construções, aprendi a desenhar e pintar letras como ninguém, minha vida mudou. Saí de Sampa para o Mato Grosso, onde criei dois filhos lindos, respeitados, inteligentes e cidadãos de sucesso. Só depois disso, consegui fazer a minha faculdade, só para brincadeira, pra ver como seria, nem era, exatamente o que eu queria. Aprendi a cantar e tocar como poucos. Agora, tal qual Caetano, Não Comte, nem Kant comigo, uma lágrima sua já basta para me consolar, eu sigo apenas porque gosto de cantar. Porém, quando exponho a s minha inclinações políticas, apenas dizem: “Petralha! Mortandela! Negro!”. Posso até ser isso tudo, mas, não sem motivos.

Carlinhos de la Mancha.

carlinhos matogrosso
Enviado por carlinhos matogrosso em 23/04/2017
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