O PECADO ORIGINAL

O amor não é algo material. Ele é um deus vivificado, está no todo. Dentro e fora da gente. Quando ele age no corpo, dando-nos prazer e gozo, é o mesmo. Temos a triste mania de destrinchá-lo em partes, como quem carneia um animal para usufruir, com prioridade, as partes mais macias e agradáveis ao paladar.

No entanto, o corpo tem, naturalmente, músculos muito diferenciados para cumprir as suas funções vitais e funcionais. Depois de feitos os cortes, variam em apresentação, textura, coloração, maciez, sabor, etc.

O touro, animal que escarva e berra à hora do golpe final, morre brigando, como se pudesse, com esse proceder, se antepor à morte anunciada e permanecer vivo. É comum se constatar este fato nos matadouros: o ‘não à morte’ se faz presente nos poros do animal.

Porque fora da vertical, em posição e prumo, só se concebe, nos poros da pele, o clímax da mais linda fúria. As partes macias são mais gostosas, porém não se desenvolveriam bem se não fossem carregadas pelos ossos e suportadas pelos posteriores e anteriores através de seus potentes esteios.

O amor é um todo e, para que se cumpra esta totalidade, é necessário que seja absolutamente individuado. O amar, enfim, tem que ser capaz de andejar e zurrar de teimosia e fúria, porque é da natureza do humano ser a percepção do sentir. Para tanto não há possibilidade de escolha.

– Mais um animal vai morrer de amor aos pequenos deuses do corpo nutriz. À volta não há fúria. A intuição confidencia que está com medo dos deuses da intimidade. Ou do que as bocas desejosas fazem da inveja: a mais insidiosa das fontes da maledicência.

O mítico está posto: o homem de dentro – o proscrito – acorda ainda sonolento e reza um Pai-Nosso. E, num repente, a luz do magma o ressuscita. Deambula em volta de seus medos e, por fim, se ajoelha como um velho e competente touro que recebe a sentença no patíbulo.

É Semana Santa. Observo o Cristo por sobre nossas cabeças acima da cama, e a miserável coroa do Nazareno reluz em sua fronte, ao sol tímido de uma fresta furando a fenestra do quartinho de terceira.

MONCKS, Joaquim. O CAOS MORDE A PALAVRA. Obra inédita em livro solo, 2017/24.

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