A obra do soldado anônimo

Aconteceu numa noite gelada do inverno de 1990, quando o serviço de guarda do quartel estava sob a responsabilidade de um senhor não muito admirado por seus subordinados, possivelmente pela empáfia e maneira desdenhosa, senão desrespeitosa, com que os tratava, muito diferente do tratamento que dispensava aos seus superiores. E ele tinha lá as suas manias. Mesmo que o frio congelasse até as ideias, por exemplo, antes de dormir ele tirava toda a roupa e vestia um pijama de bolinhas azuis. Em seguida, o asseado senhor deitava-se sobre um lençol impecavelmente branco e completamente esticado, que inclusive exalava fragrância de jasmim ou rosas – esse dado é incerto, mas é o que contam.

Nessa mesma noite também estava em serviço no corpo da guarda um soldado, e quiçá pudéssemos ter mais informações sobre a sua história ou conhecer as suas motivações, mas isso nunca foi possível dado o seu justificável anonimato, de modo que só podemos supor que ele guardava, e em dose bastante generosa, uma antipatia pelo dito senhor. E se alguém tentar florear essa história dizendo que o soldado engendrou um plano infalível, cujos detalhes inclusive garantiriam que a sua identidade jamais fosse revelada, saiba que isso está no terreno da especulação. Digo-o sem receios, porque a justificativa mais amplamente conhecida é que tudo aconteceu devido a um desarranjo repentino, que obrigou o inocente soldado a buscar uma solução criativa para dar vazão à sua obra, deparando-se, desse modo, com uma oportunidade tentadora.

Seja como for, os fatos falam por si. Naquela noite, enquanto o perfumado senhor dormia, o nosso espirituoso soldado entrou silenciosamente em seus aposentos e, talvez sem qualquer preocupação, arriou as calças para, de forma impiedosa e certamente calculada, cagar no interior de uma das botinas precisamente dispostas ao lado da cama. Lembro-me de pelo menos uma controvérsia nessa parte da história, uma vez que há quem defenda que a obra, nesse caso, foi concebida em estado semi-sólido, de modo que preencheu uma parte considerável do interior da botina. Não estranhe, no entanto, se alguém lhe contar que três ou quatro torpedos foram depositados na botina daquela infortunada criatura – essa versão, porém, é menos provável.

E, nas próprias palavras do pouco apreciado senhor, ao despertar, ele logo começou a se vestir, sem acender as luzes. Primeiro vestiu a camisa, depois as calças, colocou as meias e, enfim, mergulhou o pé na botina sorteada, notando de imediato que havia algo errado. Supôs, então, que havia ficado um pé de meia dentro da botina – é, ele esclareceu que não fazia sentido, pois as meias já estavam em seus pés, mas ele não pensou direito uma vez que ainda estava acordando – e, instintivamente, inseriu a mão dentro da botina para tirar a suposta meia. Sua primeira impressão, porém, é que se tratava de algo úmido, com uma consistência diferente, que ele revirou por alguns instantes. As coisas ficaram um pouco mais complicadas quando, ainda sem ter uma noção clara do que estava acontecendo, ele quis se certificar que o mal cheiro que estava sentindo realmente vinha de dentro da sua botina e, assim, esfregou os dedos cheios de merda em seu próprio nariz. Bem, com isso ele acordou completamente.

Amanhecia e cerca de 45 soldados foram despertados sob os gritos desvairados do desditoso sujeito, entremeados com impropérios, muitos sem significado claro. E todos, sem exceção, saíram em disparada para acudir a criatura em desespero. No entanto, ninguém teve coragem de entrar no quarto, acreditando-se que o infeliz havia se cagado todo e, de qualquer forma, o cheiro de merda era tão forte que alcançava o dormitório coletivo do corpo da guarda. Em poucos minutos, porém, o ignóbil ser cessou a gritaria e, sem tirar as meias dos pés, saiu caminhando porta afora, ainda enfurecido, deixando um rastro de bosta por onde pisava e empesteando todo o caminho até o banheiro. Dizem que o soldado anônimo estava lá, assistindo tudo e demonstrando uma surpresa fingida, embora estivesse exultante, cheio de orgulho. Se houve um plano, deu certo!

Naquele dia, uma série de acontecimentos insólitos acabariam por transformar o soldado anônimo em uma lenda. A começar, quando o serviço terminou, às 12h00, a guarda não foi dispensada, mas sim colocada em forma, quer dizer, todos ficaram em pé, dispostos em várias filas, absolutamente imóveis, sob o sol. Ficariam assim até que o nome do obreiro anônimo fosse revelado. Porém, como se passaram cinco horas e ninguém disse uma palavra, o oficial do dia decidiu pressionar mais e, desse modo, ocorreu a maior prisão de toda a história daquele quartel. Para alguns, a mais injusta também, uma vez que 45 soldados foram confinados em um espaço destinado a não mais do que cinco. E a promessa é que eles seriam soltos tão logo a identidade do soldado anônimo fosse revelada, mas eles passaram a noite lá, sendo soltos apenas no dia seguinte, sem que ninguém delatasse o autor da obra.

Diz a lenda que metade daquela turma conhecia a identidade do soldado anônimo e a outra metade tinha fortes suspeitas. Ainda assim, ninguém disse uma palavra. Nunca se teve certeza, no entanto, se o silêncio se deveu mais à consideração pelo colega ou à antipatia pelo líder, mas a primeira é a hipótese mais plausível. Fala-se, enfim, que aquele senhor tornou-se mais humilde e passou a tratar os seus subordinados de forma humana, algumas vezes até bastante cordial. Dizem, também, que ele nunca mais dormiu sem chavear a porta.

E, passados quase 30 anos após tais episódios, uma parte significativa dos membros da turma dos 45, como é conhecida, ainda mantém uma forte amizade, encontrando-se periodicamente em churrascos e eventos. Conta-se que isso se deve ao caráter e à união incomum que eles demonstraram quando, todos juntos, decidiram impedir que um colega sofresse severas punições apenas por ter pensado em uma maneira diferente, talvez exagerada, de demonstrar o seu repúdio.

(*) Escrevi essa história em homenagem aos meus amigos da 1ª/90, do V Comar, de Canoas, RS. Excetuados eventuais exageros e alguns dados possivelmente incorretos, trata-se de história absolutamente verídica, realmente vivida pela turma dos 45. E, para todo e qualquer efeito, o soldado continua anônimo até hoje.