Conversa de dois militares da reserva

Segunda feira pela manhã, início de mês em frente à agencia central do Banco do Brasil em Fortaleza, dois militares veteranos da reserva Naval se encontram, vão apertando as mãos enquanto a animada conversa se trava.

- César, como vai guerreirão?

- Tudo tranquilo Duda! e você combatente anfíbio?

- Vamos indo por aqui companheiro, meio devagar porque o vento de popa está fraco.

O riso e a descontração são claramente expressos nos rostos dos dois quinquagenários. O César continua:

- Quais as novidades homem?

- Novidade nenhuma, aumento de salário que é bom, nada! ainda bem que a saúde ainda dá pro gasto, não é companheiro?

- É isso aí, quando você fala em saúde eu automaticamente me lembro da vida... está sabendo do Boscão Naval?

- Tô mais ou menos, pipocou né? O que foi mesmo que houve com ele? Ouvi dizer que foi assassinado?

- Pelo que sei, foi, e de canivete... sangrado igual um bode, deu muito azar. Quando ele foi pra reserva, aliás ele saiu antes da gente, e já tem mais de doze anos, foi morar em Recife. O Borogodó me contou que o encontrou muitas vezes por lá.

- É verdade que andava igual um mendigo?

- É rapaz, mas um mendigo decente, bastou ele sair da Marinha, deixou crescer a barba e o cabelo, usava um paletó velho, pra você ver, num clima quente desse de nordeste um cara altão daquele usando paletó em pleno verão, parecia um doido!

- Coisa de cabeça de bagre né?

- Dizem que ele já estava separado da mulher mesmo antes de deixar o serviço ativo. Parece que a situação por lá era meio braba. Mas o que todo mundo diz é que a mulher é que era a desgraça de tudo. Mulher mandona, fresca, exigente, sabe como é que é né?

- Imagino, só sei que ele sempre viveu na mão do agiota...

- Pois é, aquilo era um santo rapaz, não tinha vício nenhum, o que se sabe era que os gastos da madame dele eram exorbitantes e ele não queria saber de problemas com ela, mas pelo menos chegou a sub né?

- É, era bem conceituado, tinha os problemas dele é não os trazia pra bordo.

- Chegou a fazer a viagem de ouro como primeiro sargento...

- Foi, tinha cocha do comandante geral, serviu com o homem quando ele ainda era fragata em Niterói...

- É isso mesmo... eu rapaz, nunca tive esses privilégios de boas comissões e viagens viu? Mas sim, como é que foi mesmo o caso da morte dele?

- O Borogodó me falou que ele estava no Recife, morava num quarto velho no centro, a ex-mulher ficou no Rio e ele pagava pensão para o filho que ainda não tinha se formado. Estava vivendo como gostava de viver, perambulando pelos sebos, comprando livros velhos, aliás ele sempre teve essa mania de leitura desde quando servimos juntos na Ilha do Governador, no batalhão de comando...

- Era metido a intelectual, gostava de filosofias e metafísica, lembro, lembro demais!

- Mas era figura de pouca conversa como você sabe, não falava gíria nenhuma de marinha e eu nunca ouvi aquele homem dizer um palavrão, só gostava de papo sobre história antiga, champollion, hieróglifos, pedra da roseta, escrita velha, essas coisas de quem não tem o que fazer. Mas, era um elemento como alguns comandantes gostam, jeitão sério, aquela coisa de Marinha mesmo, discreto, sisudo e sempre sereno. A gente nunca sabia se ele estava ou não com algum problema.

- Nunca entendi bem esses caras, parecem sangue de barata não é não?

- Mas se a pessoa observar bem, vai notar que o sofrimento está estampado nas linhas da cara, não quero parecer psicólogo, mas eu sabia que ali só podia haver alguma coisa séria por trás, sabe como é né?

- Claro, esses campanhas que nunca saem pra um soco, que mesmo no começo da carreira parecem uns santinhos, não bebem, não gostam de um pagode, nunca vão à zona, sei não, tem alguma coisa errada, ou ficam doido ou fazem merda, muitos deles pedem baixa antes mesmo de chegar a cabo, lembra do Edmilson, um branquinho da nossa turma?

- Lembro demais, parecia um robô, não aguentou o pique...

- É companheiro, mas e aí, o Boscão tava no Recife e como foi?

- O acontecido foi num dia de procissão, dá pra entender? Não sei se você lembra, mas eu me lembro bem que ele lia uns livros banidos pelas igrejas, uns apócrifos, lia poemas de Gibran, e as vezes quando estava de serviço, conversava sobre esses assuntos com algum crente, mas sempre naquele jeitão sereno dele, sem se exaltar sem levantar a voz. Você sabe como é, a maioria dos crentes é radical e não vai muito longe em conversa de intelectual, para eles a última palavra é a da Bíblia mesmo e o Boscão parecia ver a coisa com muito mais amplitude, com bem maior embasamento.

- Lembro, lembro bem, o homem era vidrado por coisas assim, acho até que ele acreditava em disco voador...

- Pois é, o Borogodó, que viaja quase todo mês de carro a Recife foi quem trouxe a notícia da morte do homem. Da última vez que foi, disse que quando chegou ao hotel onde ele vivia hospedado, recebeu a notícia da senhora dona do estabelecimento, que contou como foi o caso. Você conhece bem o centro do Recife, aqueles prédios velhos, aquele cheiro de lama e merda na maré baixa. Rapaz, essas cidades velhas, tem muito é porcaria, principalmente à noite, é puta, é veado, é drogado, e tudo quanto é coisa ruim. É lugar tão perigoso que um sujeito ajuizado não vai nunca ficar de bobeira por ali depois de certas horas, porque o assalto é certo e olhe lá se não acontecer coisa pior. Mas o Boscão estava morando no local há mais de dez anos, conhecia bem a área e não se arriscava não. Segundo a mulher do hotel, ele passava o dia fora, pelas livrarias velhas, ou conversando pelas praças e banca de revista. Almoçava em algum self service e só retornava à noite para dormir. Como você sabe o homem não era de beber nem de andar atrás de mulher, o Boscão era emoção zero.

- Mas ele também não era de frequentar coisas de igreja e você diz que ele morreu numa procissão.

- Não, ele não estava na procissão não rapaz, ele estava na rua na hora que ia passando a tal procissão. A mulher do hotel confirmou tudo, ela sim é que é daquelas que tem devoção por santos. O rolo foi por causa de uma briga de marginais, esse pessoal que é morador de rua, esse bando de filho da puta que consomem crack. Pra você ver, o policiamento não conseguiu evitar a sacanagem.

- Será que ele tava envolvido com alguma prática ilegal hein?

- Que nada, o Boscão nunca foi bobo, ele deu azar, morreu por que estava na hora errada no lugar errado. A procissão estava passando, e tomava a rua inteira, era umas seis da noite. Ele vinha caminhando por uma rua transversal e aconteceu que noutra rua um grupo de marginais começou uma briga. Não eram desses que andam com arma de fogo não, eram moradores de rua que quando muito possuem uma faca ou um canivete. Na correria de dois deles, um perseguindo o outro, o de trás jogou o canivete no da frente, este, por sorte se desviou na esquina enquanto o Boscão que vinha despreocupado recebeu o impacto mortal bem na garganta rapaz...

- Foi mesmo? Que azar da porra.

- Foi fatal, o homem morreu antes de chegar ao hospital.

- Que merda!

- É o que dá, hoje em dia quem mora em cidade grande não está isento de uma bala perdida ou coisa parecida...

- Pois é, lamento muito o acontecido... agora a viúva dele vai ficar melhor, deve receber um seguro bom, não é?

- Claro, é de direito!

- Foi um prazer revê-lo campanha.

- Até qualquer dia guerreiro velho!