A eterna interrogação de Barbosa

Ele tem jeito de Papai Noel, um andar meio balanceado, a cabeça branca e a pele clara-avermelhada, é certo que lhe falta a grande barba, mas não a tem abundante porque não quer. É calmo nos seus gestos, tem voz melodiosa de locutor e gosta muito de um violão. Chama-se Barbosa e tem muita história para contar, acho até que ele não tem segredo, pois diz para qualquer um até quanto ganha pelo aluguel de uma pousada que é propriedade sua. Diz que não é homem de se sentar numa mesa de bar para tomar somente uma cerveja. Aos sábados pela manhã quando aparece no bar do Edvaldo e pede uma estupidamente gelada, já está ditando a sentença de que só deve chegar em casa à noite e talvez levado por alguém. Nesse assunto de bebida ele é como alguns antigos boêmios que quando começavam uma farra, a prolongavam por dias. É um sujeito simples, um bom camarada, fala que tem alguns irmãos maçons e das festas da irmandade, quando cantores seresteiros são contratados para os eventos e entoam canções à moda Nelson Gonçalves.

Barbosa é filho do interior, sua mãe, foi a maior parteira de que se tem notícia na região. Ele esteve quando rapaz pela capital nos anos sessenta. Por lá ficou na casa de um tio e depois conseguiu entrar para o Exército Brasileiro. Na corporação, se encaixou no serviço de enfermagem, herdeiro que era de alguns conhecimentos práticos transmitidos pela sua genitora. Foi um tempo de correrias, mas era rapaz, tinha energia, não desperdiçou tempo, fez alguns cursos de exigência na carreira de praça, conseguiu se habilitar como motorista. Não ficou à toa, mas a rotina o deixou meio saturado. Talvez tivesse sido melhor ter escolhido ser corneteiro, gostava do som metálico do pistom, sabia que tinha jeito para isso também desde o tempo de colégio, teria sido promovido rapidamente a cabo, mas não, foi se acomodando pela enfermaria e a corporação o dispensou. Porém, já contava com um novo emprego, coisa indicada por um médico do quartel em reconhecimento aos bons serviços prestados pelo soldado Barbosa.

E foi assim que, de um dia para outro ele mudou de ambiente e clima. O homem agora era recepcionista do antigo Otton Palace. Foi o glamour, conviveu com muitas celebridades da época. Conheceu hospedes famosos, conversou e bebeu com o violonista cearense Vilamar Damasceno e o cantor Altemar Dutra. Além de recepcionista, era motorista e massagista, diz que certa vez massageou a cantora Simone. Conta que no hotel havia hóspedes que podiam ficar por mais de um ano, gente importada e endinheiradas que preferia morar num hotel e viver como antigos ciganos, viajando de um lugar para outro de acordo com o clima e a preferência. Sua vida era outra correria, mas havia mais beleza, ia ao aeroporto trasladar os passageiros para o hotel, noutros momentos os conduzia para visitas em pontos turísticos, em praias, no comércio e assim foram passando mais alguns anos de sua vida. Morava num quarto bem próximo ao hotel e as vezes, nos dias de folga era chamado para prestar alguns serviços extras. Disse-me ele que foi num desses dias de serviço extra que conheceu seu Charlie, um gringo, senhor de voz grave e sotaque híbrido de português com espanhol. Relembra que a voz do homem era como a de um tenor ao entoar óperas alemães, que era do tipo perguntador, era um milionário do petróleo que exigia motorista para onde quer que fosse com a mulher. Na primeira estadia o homem passou quase seis meses com a mulher. Depois foi embora, para retornar no ano seguinte e daquela vez ficar por mais tempo ainda hospedado. Todas as vezes que ia sair para os passeios com a mulher, mandava chamar o Barbosa, que era o seu motorista predileto.

Barbosa vivia na capital já há mais de dez anos, fazia alguma farrinha quando sobrava tempo e dinheiro. Do que ganhava guardava alguns trocados sim, mas não sabia ao certo em que investir. Já estava passando dos trinta e namorava uma moça da sua cidadezinha. Não saía daquela rotina do hotel. Por uns dois meses esteve pensando que podia voltar a residir no interior. Se não tinha conseguido muito na capital, emprego por emprego para ganhar pouco mais do que um salário, podia conseguir isso perto da família e da namorada. E a mesma insatisfação que sentiu para deixar a farda o acometeu. Escreveu para a namorada que não via há um mês e disse que havia decidido pedir as contas do hotel.

O gerente não esperava por aquela súbita decisão do Barbosa e ainda tentou convencê-lo a pensar um pouco mais, mas ele depois de uma semana voltou com a mesma ideia de que queria ir embora. Não teve jeito, recebeu as contas e foi para o seu quarto. Ia viajar naquela tarde. Não se passou meia hora lhe chega o outro porteiro dizendo para o Barbosa comparecer ao hotel pois o árabe Charlie queria falar com ele. Ora, não teve como recusar tal convite, mesmo não sendo mais funcionário. Lembrava-se de que certa vez enquanto transportava o árabe, lhe falara que pretendia voltar para o interior, e o Charlie havia lhe perguntado o que era que ele ia fazer na roça, ia plantar batata? E riu. Mas o Barbosa não se ofendeu com a interrogação do gringo ricaço, sabia que ele gostava de dizer essas coisas apenas para sua própria diversão. Foi, ao chegar na portaria, o gerente o mandou subir ao apartamento do homem. O milionário o recebeu com efusão, colocou a mão sobre o ombro do Barbosa e com aquela voz cavernosa arrastando erres, repetiu a mesma pergunta: - O que vais fazer na tua roça, vais plantar batatas ó seu Barbosa? O Barbosa, agora ex-funcionário do hotel, riu com ele e com a timidez do cidadão simplório do interior disse que não sabia ao certo ainda em que ia trabalhar. Vontade para isso não lhe faltava, talvez encarasse o comércio, podia ser motorista de taxi quem sabe, enfim, profissões tinha um bocado o resto era só arrumar o emprego ou as ferramentas.

A essa resposta, que deve ter agradado muito aos ouvidos do homem, o árabe chamou a mulher e pediu para ela trazer a bolsa dele. Puxou um talão de cheque e preencheu. Segundo o Barbosa o valor em cruzeiro era suficiente para comprar dois fuscas zero na época. Com o salário do hotel sendo guardado todo mês, ele ia precisar trabalhar uns dez anos para juntar aquela quantia. Aquilo era um acerto na loteria, quase não acreditou, e não sabia como agradecer tamanha dádiva daquele estranho de voz áspera e riso destampado: - Vais plantar batata na tua roça! Até hoje era muito grato ao seu Charlie. Em suas reflexões já de volta a sua cidade, acreditou que era pessoa de muita sorte e muito feliz. Não conhecia ninguém que tivesse tido uma recompensa daquelas. É certo que trabalhara, prestara o seu serviço e daí vinha o reconhecimento de alguém com muitas posses e que podia e queria lhe favorecer. Era eternamente grato a seu Charlie e disso fazia alarde.

Abriu uma conta na Caixa, deixou o dinheiro rendendo. Mas pouco tempo depois de chegar, uma nota negra soou no ar de sua vida. Barbosa ficou órfão, herda de sua mãe a antiga casa onde nasceu e era tempo de tomar novo rumo, pensa em casar-se. As bodas se fazem. Com os juros da poupança vai reformando a antiga casa e pensa em comprar um taxi, mas a mulher lhe propõe algo inusitado, deseja uma piscina, na parte da frente da casa, uma piscininha, não precisava ser grande não. Atende o pedido dela. Pouco tempo depois, e exatamente no dia em que pretendia viajar para comprar o taxi, encontra pela rua a esposa do médico, clínico geral, com a filhinha de uns cinco anos. A mulher o interroga sobre a sua casa se era aquela de piscina, sim tem uma piscininha lá na frente. É que a sua menina tinha adorado o lugar. Aí veio logo a pergunta da madame se ele não tinha interesse em vender, ou trocar a casa. Respondeu que não, mas a mulher insistiu em lhe mostrar um prédio velho do centro com um espaçoso terreno nos fundos.

Ao visitar o local, o Barbosa viu que sua sorte cada vez mais lhe sorria. Aquilo era um negócio bem vantajoso, pensou, e lhe veio a inspiração, que não devia comprar o táxi agora não, ali estava lhe aparecendo a rara oportunidade de ser proprietário de uma grande pousada na cidade. Sim e como seria a troca? Perguntou, e a mulher respondeu que já havia conversado com o seu marido e que propunha a troca de um no outro, pois a menina adorara a piscina da casa dele. Ao tratar do assunto com o doutor, o Barbosa fechou imediatamente o negócio. Passou a residir no local, com os juros foi reformando e aumentando o espaço, e vieram os filhos e ele nunca comprou o táxi. Vivia do que lhe rendia a pousada, e assim, se passaram mais de quinze anos.

Ele lembra uma dessas figuras de papai Noel, mas eu não disse que ele hoje se acha um sensitivo, é. Barbosa disse-me que já teve sonhos premonitórios e que tem avisado às pessoas com quem sonha que tomem certas precauções, como não dirigir naquele dia, e para seu espanto sempre acontece algo inesperado quando alguém deixa de seguir suas recomendações. Ele repete que sua mãe foi a maior parteira da cidade, fez milhares de partos. Mas depois muda de assunto e diz que não se senta para tomar uma cerveja somente, ou bebe muito ou não bebe nada. Diz que o diabetes está lhe tirando a audição e a visão, mesmo assim gosta de tocar um violãozinho e cantar algumas canções da jovem guarda. Procura fazer amigos, sua vida é assim, tem os irmãos da loja maçônica, foi enfermeiro do Exército trabalhou no grande Othon na capital, ouviu na mesma mesa a voz de Altemar Dutra que era tão límpida ao vivo como nas gravações que a gente ouve hoje. Que o violonista Vilamar Damasceno era o maior boêmio da época e que o homem tanto tocava muito violão, como bebia demais na praia de Iracema.

- Vilamar se acabou junto com a sua desvairada boemia, e é isso todos vamos prestar conta com o lá de cima. E aponta o dedo para o céu.

Nesses momentos de confissão, sei que ele deve tocar mais uma vez na funda ferida que lhe dói. Tenho que cortar o assunto e proponho uma nova canção ou um gole a mais, pois sei que se eu o deixar falar nesse tom existencial, certamente repetirá o que já por várias vezes me disse, e dirá que até hoje não sabe exatamente por que seu filho, o primeiro, um garoto de quinze anos pegou aquele revólver e fez o que fez com a própria vida? não sabe!