Fora chegada a hora. A hora mesma que a ninguém escapa. A hora da vida prometida nesta terra. Aqui pode ser diferente de aí, porque aqui a hora é ditada pelo rio, aliás, tudo aqui é ditado pelo rio. É como dizem, a vida tem que seguir o seu curso, a vida é como um rio; para a gente desta terra esse era sempre o primeiro e o último ensinamento da vida. É pena que nos dias que correm, os homens não entendam mais esse simples ensinamento; hoje todos têm medo da vida e dos cursos que essa segue. É o rio que um dia, em sonho ou não, mostra, mostrava, os caminhos aos homens desta terra.
Foi assim com Nestor. Ah, o Nestor, homem sério, cuja família se perdeu porque fugiu ao entendimento dos cursos do Grande Rio, da vida. Se perderam todos da mulher ao caçula; eu mesmo vi tudo e até me perdi no final, por piedade. Talvez o próprio Nestor tenha também se perdido nos cursos de seu rio.
Nesta terra fazia sol e tinha sempre uma brisa acolhedora. Quando chovia era de pôr medo até na terra, que parecia até sangrar de dor. Quando os velhos ainda eram ouvidos, eles diziam que se chovia na terra, era porque os homens estavam sendo castigados e só a pura água da chuva poderia apagar deles o pecado da carne que consumia a terra toda em seca plena.
Nesta terra, era costume morar sempre à margem do rio, pois era de onde tiravam o peixe e a água. Mesmo a plantação era movida melhor ali. Era no rio que se nascia e era no rio que se morria.
Nestor despertara certa vez com a ideia de ir pelo rio sozinho para ver o que não se via dali.
O rio era grande, fundo, de águas caldolentas e escuras, era sempre calado, era misterioso. Tinha margens largas, não se via o fim nem o começo dele. Era o próprio mistério. Todos os que saíram por seu curso, jamais voltaram, o que dava medo. Não se sabia se morriam, se viviam melhor, se simplesmente já se eram.
Nestor, em segredo, mandou fazer uma canoa das bem-boas, daquelas que era para quem a queria pelo sempre. Quando a canoa ficou pronta, sua mulher sofreu doideira e ele nem quis dar conta. Sem quase nem um adeus, Nestor se foi ao rio, em solidão; se foi só de chapéu a mão. O mais novo dos meninos, era de ter pena, era mesmo de sofrer. Era com o pai dele que ele mais tinha o sentido das coisas. Agora e sempre, desde a ida, o menino está a esperar a volta do pai.
E Nestor em curso do rio era visto, mas se tentado alcançar, se sumia e ninguém o via e nem podia falar a ele. O mais novo tinha o costume de pôr comida para o pai dele toda noite, como se o pai viesse buscar mesmo. Isso era o costume da terra que se fazia viver no menino, mas que o povo já se esquecia.
Com o tempo, só o menino mesmo via o pai. A família se partiu na desesperança de Nestor voltar. Nestor não voltava e nem ia voltar mais; nem mesmo existia na voz daqueles dele. A família não era mais dele, nem ele mais era dela.
Depois da última chuva, foi isso: se foi o mais velho em busca de aventura, a menina casou e se foi; a mulher, grávida dos não saberes da ira, também se foi. O menino mais novo à margem ficou, a espera do pai que voltaria, sem mais nem menos.
Nem mesmo o menino via mais a imagem do pai dele depois da chuva. E, mesmo assim, o menino se condenou à margem. Todo dia, o menino fazia chamado na beira, mas nada via, nada vinha. O menino que não era mais menino fazia sempre frente ao rio com o entregado da comida de noite e o chamado de dia. A comida sempre se sumia, se consumia como o fôlego daquele que a deixava.
Ao ritual do dia, num dos correntes do curso do rio do menino, ele viu de longe o pai dele. Ele vinha diferente, depois de muito tempo passado. Nestor acenou e o menino, feliz e amedrontado, evocou desejo de com ele fazer trocado de seu lugar, e o pai vinha, como se aceitasse. O apavoramento do não entendimento, do envelhecimento do fôlego já abreviado do menino, fez ele estremecer, correr e chorar.
O menino se perdeu agora do Grande Rio que a ele dava o curso. Era chegada a hora, e o menino a desentender o ensinamento, fugiu. Do pai nunca mais soube nem mesmo viu. Nem frente mais à margem, em ritual do dia e da noite, fez. Nem à margem mesmo foi mais à toa. Ficou só, entregue apenas à dura e seca margem de si, a espera de se secar pelo todo e passar ao rio pelas mãos de outros.
Depois desse último medo do Grande Rio, o rio nada mais ditou. Nem há mais rio, nem mais terra. Tudo se fez perdido nos pecados da carne e nem chuva de água pura vem mais para apagar eles. Tudo secou e tudo inundou. E tudo se acabou.
Marília Francisco
Enviado por Marília Francisco em 20/08/2016
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