Eu, homem sério nascido no sertão, aos trinta e sete anos, com esposa e filhos, acordei um dia resolvido em encomendar uma canoa. Não qualquer canoa! Mas uma especial, uma que me desse firmeza para muitos tempos. Quando a canoa ficou pronta, a minha mulher fez seus resmungos, mas nem mesmo ouvi. Fiquei com pena foi do menor, mas não podia negar o chamado que sentia, porque vinha do rio.
Era um dia de sol esse em que parti. Nem mesmo necessidade senti de carregar alguma coisa a mais para a viagem, apenas o chapéu. Parecia que eu tinha até pressa. Sai sem dizer muito, não queria perder o chamado, foi apenas um seco adeus.
Parti. Meu coração quase que perdeu o chamado quando vi o menor tentado a vir com o pai dele. O pobre era de dar pena, pois não queria que eu partisse sozinho.
Semanas já eram passadas que eu só canoava, quando fiz encontrado do que eu sentia ter de encontrar, uma estreita passagem no meio do rio. Era um portão bem estreito que só passava mesmo uma canoa, era feito da cor da lua. Esse eu encontrei na noite da tempestade, não sei dizer onde estava, nunca tinha visto antes, mas apenas pensado ter visto. Isso na noite que quase morri quando era jovem e ia para as aventuras. Atravessei a passagem e já se fazia dia. Encontrei cidade nova, encontrei trabalho, fiz casa boa com plantação e tudo. Procurei então de volta a passagem para buscar a minha família para morar nessa nova terra, terra abençonhada.
Meses passaram, quando descobri uma gruta que ficava aqui mesmo na cidade nova, perto do porto. Os antigos daqui dizem que, com a magia do coração mais a magia da água que corre pelas pedras, a gente pode ver aqueles por quem a gente sofre saudade, e, somente quem bem nos sofre nos vê também.
Sempre via a minha família. Fiquei muito aborrecido quando minha mulher mandou vir aquele irmão dela para cuidar do pouco que era nosso. Tinha medo que ele pusesse tudo abaixo. E pior aborrecimento desta vida foi o da minha filha ter feito casamento com aquela coisa sem eira e nem beira que a levou embora; não queria ver ninguém dessa categoria levando minha filha. Depois, me aborreci mais ainda quando o mais velho abandonou a mãe para ir ter emoção, foi aí que a mulher teve doidera de vez e se mandou para as bandas da minha filha. O que sempre me tocava no peito, mas que também me aborrecia, era o menor. Que doidera foi aquela de ficar me esperando! O moleque, de tanto me imaginar voltar, ficou quase eu em pessoa. Eu que sempre via nele um doutor, agora ver a própria imagem do eu, era de endoidecer. De tanto aborrecimento que via, achava até que era coisa do demo, porque só via o que para mim não existia.
Depois que aquela coisa levou minha filha e mulher, nunca mais consegui vê-las. Foi logo, aquele meu cunhado morreu, o que me deu até alívio, e meu menor cuidou de tudo meio sem cuidado, pois só queria cuidar do rio para ver se eu voltava. Cada vez mais que eu ia na gruta, menos eu acreditava que era possível ver a verdade. Eu queria mesmo era voltar e ver que tudo ia bem, mas cadê a diacha da passagem? Já tinha percorrido a cidade nova toda, as margens de seu rio, e nada. Eu perguntava para as pessoas mas ninguém dava a direção certa. Eu achava estranho era a noite que nunca vinha. Se vinha, era eu que nunca via. Talvez aquele portão daqui só fosse visto de noite, já que era da cor da lua. Eu procurava nunca fazer dormido para não perder a hora de busca, mas quando ia ver era dia e sempre dia.
Não sei quanto tempo passou até que o meu patrão me disse que eu já poderia ir buscar minha família, mas teria de voltar logo, senão não daria mais para voltar. Pensei que todo mundo estaria lá na margem me esperando. Que nada! Só o menino mesmo. Ah, esse moleque não teve jeito mesmo. Mas olhando assim até dá pena. O rapaz nem quis perder tempo com casamento, mas perdeu toda a vida de fôlego. Agora, vindo ele comigo, eu caso ele com moça boa de família.
Fiz a partida, tomei o chapéu na cabeça, o que há muito não fazia, mas acho que dormi no meio do caminho, porque não vi a passagem, nem mesmo lembro se vi a noite. Cheguei então na margem mesma que parti e lá fiz encontro com o menor. Não sei se ele não me conheceu mais, só sei que ele fez fugido de mim.
Devo ter me aborrecido tanto que nem vi voltar. O sofredor foi tanto que doeu no peito e devo ter tido aquele dormidor de gente fresca. A minha canoa voltou sozinha pra cidade nova me carregando como mágica. Nunca mais consegui por as vistas no moleque pela gruta. Acho que ele abandonou tudo e foi ter com aquele desgosto da minha vida, o desbeirado do meu genro.
Sei que a noite mesmo nunca vi daqui. Diz-se por aí que é porque quando ela vem e quando ela vai tudo dorme e nada a vê. Só mesmo o sol. Sei também que sofri dano do chapéu. Esse fez perdido no meio da última viagem. Agora só trabalho. Sou homem sério ainda, mas agora sozinho para sempre.
Marília Francisco
Enviado por Marília Francisco em 20/08/2016
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