O que seria do futebol ?

O que seria do futebol ?

Quando entrou em campo veio junto toda a promessa que o pai lhe fizera: “ você será grande e reinará muito tempo” – Era o ano de 1956.

Aos dezesseis anos de curta estrada, ele nada sabia de vôos, sonhos ou futuro, apenas jogava o que sabia, mesmo que nem soubesse como o fazia: colava a pelota nos pés, embaraçava os adversários e mirava no quadrado mais alto dentro das traves - dava certo, sempre - E novamente a mágica se fez presente, não tinha erro, seria mesmo um gigante como seu pai lhe disse um dia.

Alheio ao futuro do jovem diamante, apesar de viver na mesma cidade e até torcer pelo time do iniciante atleta, Aurélio Dantas estava obcecado com a srª Nartina, amantíssima esposa do delegado Aresto Coubres; Não que ela o tivesse incentivado ou demonstrado algo mais que a simples e inocente simpatia de vizinha.

O problema é que Aurélio, Lélio para a turma, era um rapaz da fuzarca e como tal, confundia tudo; nesse caso misturou imaginação com realidade, iniciou a enxergar paixão correspondida onde nada existia, coisa típica do amadurecimento, hormônios e fantasias luxuriosas.

Pobre srª Nartina ! Era musa inconsciente, quase um objeto nos sonhos do outro e como este sonhava, lençóis e lençóis como testemunhas dos seus devaneios.

A primeira vez que Lélio a viu foi em sua própria casa, que distava meio muro e um pulo para o lado direito da residência dela – visita social, vizinhos novos – do seu quarto ouviu a mãe lhe chamar num tom de voz muito abaixo do normal: senha para não responder aos gritos, como era seu costume rebelde.

Contrafeito, desceu.

Logo notou o sujeito mal encarado, barba cerrada, cabelo à escovinha rente ao cocuruto. “É cana”, pensou. Ao lado do elemento, sentada como uma santa à paisana, a mulher mais linda do mundo, não conseguiu mais olhar outra coisa.

“Boas noites, como vão, sou da Polícia, não temos filhos, sou professora”, palavras desnecessárias. Lélio não ouvia nada. Dr. Aresto, tudo ou quase, passou-lhe despercebido o coração acelerado do jovem e um pequenino arroto da anfitriã, nada grave.

Os dias seguintes foram de sofrimento, vigílias infinitas, emagrecia, padecia de amor e, perdoem os mais recatados, desejos inconfessáveis.

Mas como se de pirraça, a srª Nartina, aos olhos de Lélio, parecia ficar mais bonita ainda, diria se parecer a um anjo luminoso, se não soubesse eu que tais seres, quando casados, não costumam flertar com seus colegas professores; Apesar da aparente pureza, nossa delicada dama se perdia de amores por Bruno Leal (e era correspondida).

O ambiente de trabalho, as longas conversas, o trabalho bruto do marido, as desculpas de sempre e sempre tão verdadeiras nessas situações de carência e tristeza - Dizem que o destino costura se lhe se dá linha – não houve avareza nesse idílio.

Como bom homem da lei, o delegado amaldiçoado por sua bela mulher, desconfiava: Uma ou duas vezes algemara sorrisos misteriosos na face de sua consorte, encontrou um bilhete perdido ? palavras soltas no sono – sim, ele desconfiava.

Mas Lélio, ignorante dos rumos dessa trama, agiu como convém nesses casos de dor imensa: irresponsavelmente.

Decidiu-se por enviar pequena missiva à amada, nada muito rebuscado nem complicado, desejava um encontro: “Confeitaria Viena, sábado, 14 horas, preciso lhe falar com urgência, linda Nartina” – escreveu ele no pequeno papel branco, somente isso, tinha medo, claro.

“ Mas que loucura é essa?” pensou nosso apaixonado, “ arrisco ser preso, até mesmo, morto - Se ela não for, me mato”.

O último argumento atingiu o alvo, pois, intimamente, esperava que ela não comparecesse realmente, seria a coroação de sua tragédia, uma verdadeira fita de cinema, Lélio era um romântico medieval.

E assim pensando, cuidadosamente, deixou sua mensagem embaixo da porta da casa invejada e fugiu como um pervertido do flagrante, apenas parou de correr dois quarteirões abaixo, perto da panificadora do bairro, aproveitou e bebeu uma soda limonada.

Lélio sabia que dª Nartina estaria sozinha em casa, tanto a observou e por consequência, os horários do marido que sequer imaginara que ele, por uma dessas voltas do mundo, poderia retornar logo após sair e encontrar seu bilhetinho anônimo, ali na sala de entrada, como um inseto maldoso a lhe invadir o lar sagrado, Lélio não pensou nisso, confiava que havia entregue praticamente em mãos seu recado.

Mas o certo que dr. Aresto voltou instantes após o rapazola fazer penetrar porta adentro seu convite - Quem sabe tenha retornado por um documento esquecido, talvez trocar o sapato que lhe angustia o calo, isso não importa agora.

Mal entrou em sua casa e o delegado encontrou o bilhete abandonado no chão. Como não tinha remetente ou destinatário externos, abriu-o e leu. Homem de horários e hábitos, agendou mentalmente data, local e horário, iria ao compromisso, não havia dúvidas.

Mudou a gravata e foi trabalhar. Dª Nartina nunca soube das palavras que lhe foram destinadas.

O sábado chegou radiante de sol, trazendo uma partida de futebol perfeita, tanto que depois do jogo, o garoto fenômeno, já entrando nas graças da fama, aceitou convite para uma tarde de delícias e doçuras, ia ter jornal para entrevista, fotógrafo de revista, resenha do jogo, perspectivas do futuro.

“ Isso é só o começo”, adiantou seu agente e representante – “ precisamos do jornais para que você irrompa – Não basta só o talento que Deus lhe deu, precisamos contar pra o mundo”.

O atleta concordava, mais por educação que por entendimento. Pensava nas tortas , refrigerantes e claro, como todo jovem saudável, nos “brotos” que conheceria, tão lindas, tão admiradas de suas jogadas - era um guerreiro, sua lança estava pronta para a batalha após os muitos treinos.

Às 14 horas desse dia todos os convidados estavam a postos na confeitaria, o estabelecimento famoso estava repleto, quase todas as mesas possuíam dois ou mais clientes, em duas delas, apenas, reinavam solitários: Lélio e Dr. Aresto, pois vinham na mesma intenção de encontrar alguém.

Numa mesa mais ao canto, um pequeno grupo sorridente, em volta de um garoto, comentava a partida recém-terminada enquanto esperavam o fotógrafo free-lancer, arranjado de última hora, pois o profissional titular estava viajando para cobrir o espetáculo do domingo na capital.

Não se sabe bem o que aconteceu, testemunhas relatam que viram um jovem bonitão entrar na confeitaria trazendo uma máquina fotográfica a tiracolo, se encaminhar para o grupo risonho com o garoto e depois, apenas confusão.

Acontece que ao ver o professor, colega de sua esposa, entrar na confeitaria, naquela hora específica, naquele dia marcado, Dr. Aresto, ainda com o bilhete em sua carteira de couro, não teve dúvidas, já os tinha visto juntos antes conversando nas festas do colégio, e furtado alguns de seus olhares secretos: a presença dele ali apenas sentenciava o conjunto da obra – era traição descoberta.

Sentindo-se tranquilo, agradavelmente pacificado, o delegado sacou seu revólver (depois de ter se levantado, passado por Lélio e, ironicamente, tê-lo cumprimentado gentilmente, não percebendo a palidez cadavérica que se apossou do jovem que lhe encarava aflitivamente), para então disparar três vezes contra Bruno Leal: professor de artes visuais, fotógrafo esporádico e amante sórdido de sua mulher, Nartina Coubres Douro.

Dois balaços atingiram o coração rubro de Bruno, que na queda driblou o terceiro projétil.

O jovem talento, promessa do Brasil (como estava escrito nas notas do repórter) ouviu o foguetório, e na displicência da idade, com reflexos condicionados de ação, se levantou a tempo de aparar a pequena bola de chumbo que vinha quente e certeira: rasgou-lhe a rede peitoral e ficou no fundo do seu corpo, esperando ser resgatada. Nunca foi, apesar dos gritos conhecidos, parecidos com os da torcida apaixonada após o gol.

Os jornais do dia seguinte noticiaram a prisão do homicida, a tristeza de sua esposa (não se sabe por qual motivo) e a morte prematura de um craque em início de carreira: Edson Arantes do Nascimento, já conhecido no meio como Pelé !

“ Ele tinha asas nos pés, não era desse mundo”, diziam por muito tempo quem o viu jogar, principalmente depois que a Seleção Brasileira perdeu a Copa do Mundo de 1958 – o futebol brasileiro morreu ali naquela confeitaria, outros afirmavam.

Exagero ? Nunca saberemos.

(Peça de ficção do gênero Conto de Realidade Histórica Alternativa participante do Desafio Literário Entrecontos.com)

Olisomar Pires – olisoblog.com