A garrafa do homem

Os anos eram decididamente os cinquenta, segunda metade. Não me lembra agora se éramos já moradores do burgo da Velha Serrana, ou se lá tínhamos ido de visita num domingo do Senhor, que a folga, faz a gente, às vezes, viajor. E do povoado do Brumado ali, a uma légua, não passava de um passeio - empoleirado e empoeirado - de jardineira. A do Tunico, do tempo em que ônibus inda tinha bico.

Sei que éramos pelo menos cinco: papai, uma tia, mana Bebel, eu e mano Beu. Quanto à identidade da tia, sem saber o mais certo, o mais perto, é que era Vicentina, ou remotamente, podia ser Isabel.

Alguma missa, um guaraná Antártica para molhar a alma e a visita ao Zé Camilo, um quase parente que, provavelmente era irmão remanescente de uma das quatro mulheres de quem vovô Velusiano ficara viúvo - até encontrar a quinta, Inhana, que o sobrevivera, naquela conjugal batalha insana.

Achar a casa foi fácil. Papai, além de bão na direção, é melhor na perguntação. E gente de idade é conhecida de toda cidade. Recebidos com a mineirês cortesia, mas sem muita regalia, fomos conduzidos ao quarto, onde jazia o recordado Zé Camilo. Mais velho de todos, já bem encovado, era magro, chupado e alternava a vida, entre o deitado e o sentado. Agora por exemplo estava assentado, metido nuns pijamas claros, só não tanto quanto os grisalhos pêlos para trás penteados.

Mas o que nos transfixou a atenção, não foi alguma eventual guloseima a ser servida sem café mesmo, mas foi olhar para o chão, à beira de sua cama: um pequeno e descorado tapete servia para Zé Camilo apoiar os pés, revestidos de meias grossas, não sem antes relá-los e relá-los sobre uma garrafa dessas de cachaça, cujo conteúdo vimos a saber aguardente não ser, mas água quente pra do frio não padecer. A cor da garrafa é ainda objeto de contenção entre eu e Beu. Se eu lhes disser que era amarronzada, que era verde, vai ser por ele sustentada. Como ganhar essa parada?

O papo era bom, retomava coisas e causos dum longo hiato passado entre visitantes e visitado, mas não nos magnetizava tanto a atenção quanto aquele rolar, já bem destro, da misteriosa e miraculosa garrafa.

Só ela parecia separar aquele já quase vulto, insepulto, vivendo por sacro indulto, dá eternidade que parecia, estar a seus pés.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 30/06/2015
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