Dizeres inusitados na cruz à beira da estrada... (EC)
Nas várias viagens que já realizei pelas rodovias de nosso país, não foi muito raro encontrar aqui e acolá, cruzes fincadas em suas beiradas...
Via de regra, postadas em curvas acentuadas, sem, no entanto, olvidar algumas que se situavam em extensas retas...
E foi precisamente sobre uma dessas, colocadas em extensa reta de uma rodovia que me chamou atenção pelo ineditismo de sua apresentação, totalmente diferente de todas aquelas com as quais já havia me deparado, mais parecendo uma homenagem de vida do que de passamento, ao parar em posto de abastecimento próximo pude ouvir o relato do porquê de ela estar por lá.
Contrariando todas as minhas inferências acerca dos motivos que levaram pessoas a fincarem réplica de tão conhecido símbolo cristão em locais de interligação entre localidades, principalmente aqueles colocadas em locais de periculosidade evidente, em se tratando de veiculação de transporte, nem sempre obedecendo regras de um bom transitar, nas quais pressupunha homenagem póstuma a alguma vítima de fatal acidente, ouvi relato do que originou aquele ‘fincamento diferenciado’ com a seguinte versão:
--- Seu moço, ainda menino trabalhei de sol a sol pois queria, assim como o Toninho, um meu amiguinho desde meu nascimento, cujo pai era doutor, poder ir para a cidade grande estudar para conseguir ‘ser alguém’, sair dos trabalhos árduos e tão mal remunerados e levar também meus pais para uma existência mais digna! Fiz deste sonho minha meta de vida e com muita luta e perseverança consegui atingir meu primeiro objetivo, rumando com as bênçãos de meus pais, para estudar na cidade grande!
Meu interlocutor fez uma pausa, pigarreou enquanto sorvia um gole de sua cerveja, prosseguindo:
--- Como estava contando, com grande esforço, abrindo mão de muitas necessidades ‘de quando se é jovem’, estudando muito, consegui formação. Muito alegre e me sentindo realizado, resolvi partir para a segunda parte do meu sonho, que era resgatar meus pais da dificultosa vida que levavam. Já devidamente colocado, recebendo um salário condizente que me permitiria manter-me e a eles por lá, encaminhei uma carta dizendo da minha decisão de ir buscá-los.
Fez nova pausa, pigarreou novamente e pude notar que estava com os olhos marejados. Fazendo um enorme esforço para não soluçar, prosseguiu:
--- Recebi missiva em resposta, na qual meu amado pai relutava em deixar local onde nasceu, se criou, constituiu família e que, apesar dos percalços que a vida lhe proporcionou, havia fincado raízes. Minha mãe, como era próprio das companheiras daquela época, em nada interferia nas decisões e ‘como vaquinha de presépio’ apenas balançava a cabeça concordando com as decisões do meu pai. Embora reticente, resolvi deixar para ocasião mais propícia dirigir-me pessoalmente até aqui para dissuadi-lo do propósito.
Após demandado um tempo razoável, soube ‘en passant’ que o governo a guisa de construir uma nova rodovia estava desapropriando casas exatamente na região onde moravam meus pais... Eu, formado como operador da lei, imediatamente procurei saber acerca da veracidade do que havia ouvido e, consternado, comprovei que a propriedade de meu pai estava diretamente inserida no contexto da desapropriação. Imediatamente me acertei no escritório em que estava prestando serviços e rumei para a casa dos meus pais, com o fito de saber a quantas andava todo o processo desapropriatório.
Logo que cheguei, levei um choque ao verificar que a propriedade na qual nasci, me criei e muito trabalhei estava no chão! Literalmente sido derrubada e fiquei ali, parado por alguns bons instantes sem qualquer ação não acreditando no que os meus olhos literalmente insistiam em me mostrar. Notei que havia algumas máquinas e trabalhadores bem próximos e incontinenti me dirigi em suas direções, gesticulando e bradando:
--- O que fizeram com a casa dos meus pais? Onde eles estão?
As pessoas me olharam impessoalmente e prosseguiram com seu trabalho. Quase ‘fui à loucura’ com tamanha indiferença, aproximei-me mais e tornei a bradar:
--- E então? O que fizeram com meus pais?
Desta feita, o tom exasperado com o qual lhes dirigi a pergunta surtiu algum efeito e deles, que me pareceu ser o responsável pelo trabalho que estava sendo realizado, dirigiu-se a palavra:
--- Pois não, senhor! Em que podemos ser-lhe útil?
Quase sobrepondo a indagação, respondei a um só fôlego apontando para os escombros que sobraram da casa de meus pais:
--- Aquilo ali! São escombros do que era a casa de meus pais! Para onde eles foram?Meu Meu interlocutor olhou ‘de soslaio’ para os demais trabalhadores e respondeu:
--- O senhor e a senhora que ocupavam indevidamente este espaço, resistiram à ordem de despejo e fomos obrigados a retirar seus pertences, colocando-os em um caminhão, que ao que nos parece levou ‘os trastes’ para a casa de um compadre, parente ou coisa que o valha deles... Estas mesmas pessoas levaram os dois consigo... Parece-me que ouvi o senhor tratar a pessoa que o amparou como Nezito...
Sem conseguir me conter, literalmente gritei:
--- Como foi possível fazerem uma arbitrariedade como essa? Tratarem duas pessoas idosas que estavam quietas em sua propriedade com tamanha indiferença? Meus pais viveram toda uma vida aqui, por mais de cinquenta anos...
Fui novamente interrompido pelo interlocutor:
--- Bem senhor! Tivemos ordens judiciais para removê-los daqui. Eles eram invasores de uma terra que o governo necessita para construir uma rodovia que passará por aqui...
Quase perdendo o controle, ainda tive forças para dizer:
--- Não vou ficar aqui perdendo meu tempo tentando entender tamanha injustiça! Vou procurar meus pais e posteriormente procurarei os órgãos competentes para saber exatamente acerca da justeza da arbitrariedade que cometeram contra dois anciãos!
‘Dando de ombros’ o trabalhador respondeu:
--- Faça o que achar que deve fazer! Nós vamos continuar com nosso trabalho...
Sai ‘cantando pneus’ do local, dirigindo-me imediatamente para a casa do meu padrinho, o citado compadre Nezito. Em poucos minutos já estava estacionando e chamando:
--- Ô de casa! Padrinho! Madrinha! Tem alguém por ai?
Sem muita demora, fui atendido pelo meu padrinho, que foi logo me dizendo:
--- Ô filho ingrato! Finalmente apareceu... Quase nem dava tempo em conversar com seu pai...
Assustado, resfoleguei:
--- Sua benção, padrinho! Por que filho ingrato, padrinho? O que está havendo com meu pai? E minha mãe?
Ao que meu padrinho respondeu:
--- Deus te abençoe! Depois conversaremos melhor! Vai entrando... A Rosinha o levará até seus pais...
Adentrei a residência rapidamente, onde me deparei com a Rosinha, filha dos meus padrinhos, que me tomando pela mão, conduziu-me rapidamente para os fundos da residência, em direção à pequena edícula lá existente. Postou-se ao lado da porta, dando-me passagem. No recinto vi, lado a lado, deitados em espaçosa cama de casal, meu pai e minha mãe que me lançaram olhares com um quê de desespero estampado!
Aproximei-me tentando demonstrar uma calma que efetivamente não estava sentido e falei:
--- Papai! Mamãe! O que aconteceu?
Enquanto minha mãe permaneceu impassível apenas me olhando, meu pai, com voz tênue exclamou:
--- Filho! Destruíram nossas vidas!
Com tremendo esforço para não cair em prantos, dissimulei e tentei contornar:
--- Não... Ninguém destruiu suas vidas... Agora é que efetivamente vão começar dignamente vivê-las...
Teimando em tentar conter uma lágrima que insistia em rolar pelo canto dos olhos, meu pai concluiu:
--- Não, filho! Tiraram-me tudo o que construí por uma vida! Só o estava esperando para pedir que deixe registrado no local onde vivemos toda uma existência, com algo que marque a ingratidão que cometeram. Assim que prometer que o fará, partirei feliz! Cuide de sua mãe com todo o amor que ela lhe merece! Você promete que cumprirá estes meus pedidos, meu querido filho?
Não consegui mais conter minhas lágrimas que também começaram a rolar abundantemente. Ajoelhei-me junto ao leito que abrigava meu pai e jurei:
--- Pai! Ficaremos os três juntos vivendo dignamente... Cuidaremos nós dois da mamãe e com toda certeza providenciarei a marca que solicita que eu faça onde viveu quase toda a sua vida...
Meu pai afagou carinhosamente minha cabeça, beijou-me e serenamente pendeu para um lado sua cabeça ainda recomendando num fio de voz:
--- Filho... Dê todo seu amor para sua mãe... Não deixe que a maltratem...
E expirou...
--- Seu moço! De nada adiantaram minhas peregrinações pelos órgãos públicos em busca de uma compensação pela arbitrariedade cometida e o do que foi feito não houve remendo. Casei-me com Rosinha e hoje minha mãe é cuidada por ela como uma filha cuidaria de sua própria mãe!
Na beirada desta rodovia onde se situava a propriedade esbulhada de meu pai, finquei uma incomum cruz, onde se destacam os dizeres: A morte me levou. Não acidentado nesta rodovia que não existia, mas ultrajado nos meus direitos de humilde cidadão!
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Uma cruz à beira da estrada
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