SOBREVIVÊNCIA

_____ "Querida..."

A menina virava as costas para mim, colocava um braço para proteger seu prato de sopa e dizia:

_____ "Professora, olhe o Samuel..."

A professora tinha outras ocupações.

A vítima estava desprotegida.

Eu retornava:

"_____ Querida...

Vamos lamber ferida?

Simulava então voz aguda, de menina:

"_____ Ferida não me seduz,

prefiro um copo de pus".

Voltava a usar voz de menino:

"_____ Pus também não me agrada.

prefiro engolir escarrada."

A menina levantava e deixava o prato de sopa na mesa:

_____ "Nojento!!!"

Eu terminava com a sopa dela, depois lambia o prato.

Na escola rural não havia merenda fornecida pelo poder público.

Colaboravam os alunos, cada qual levando alguma coisa para a sopa: abobrinha, chuchu, batata, cebola, alho, couve, etc...

Ossos trazia a professora, que ganhava de um açougueiro da cidade.

Às vezes, alguns pedaços de carne.

O arroz da canja era quirela doada.

A lenha colhida no quintal, pelos alunos mais disciplinados, como prêmio.

Dona Mariazinha, viúva sem filhos, era a cozinheira voluntária.

Seu salário era participar da refeição.

No recreio, enfileirados, com um prato e uma colher na mão, passávamos pelo caldeirão que exalava cheiro delicioso.

Dona Mariazinha era generosa, enchia nosso prato.

Regalávamos; ninguém passava fome.

"Que vida boa...

que vida boa...

sapo pulou na lagoa..."

Tempos inocentes.

Crescemos e as coisas ficaram mais complicadas.

Mas graças a Deus, nunca faltou franguinho na panela.

Entretanto, volta e meia vamos a alguma festa onde a comida é colocada no aparador, a disposição dos convidados.

E nessas ocasiões, acordamos o homem da caverna que há em nós, pegamos um prato e vamos enfrentar fila.

Em geral enorme, porque festa classe média é mesmo assim, filas e gente furando filas.

Depois vamos nos servindo de salada, arroz, fricassê de frango (eu pulo esse prato), creme de milho, macarrão, creme branco ou ao sugo e....

tcham... tcham... tcham...

Lá na ponta, guardado por um garçom sem expressão no rosto, com uma colher (que sempre é pequena demais para o meu gosto), uma ou duas travessas das carnes ou popularmente "mistura".

Esse garçom, que mais parece um centurião de Roma a mando de Nero, vai colocando, economicamente, no nosso prato, o filé mignon, ou um pedaço de robalo, ou ainda... um pedaço de frango enrolado no bacon.

Como vê, companheiro, não tem essa de pegar à vontade para encher a pança do bom e do melhor.

Você tem que se submeter à autoridade do guarda pretoriano.

Ts... ts... ts...

Eliezer, (que Deus o tenha!!), orientava que nessas horas é que o homem tem que ser homem.

Um homem com um prato de arroz e farofa na mão, precisando colocar mistura no prato à vontade, para matar a fome, sua e o da sua companheira, tem que deixar de ser cavalheiro, jogar a educação no fosso e voltar ao mais terrível passado da humanidade, tal e qual quando saia armado da gruta para matar um mamute ou um tigre dente de sabre.

Dizia ele:

____ "Nessas horas o melhor a fazer é fechar a cara. Fazer cara de mau, de mafioso, de criminoso, de perverso. Olhar para esse garçom que segura a colher censora na mão, (na intenção de cortar o nosso barato de comer bastante carne), pensar firme e dizer em voz baixa: "seu canalha, seu traste, conheço sua laia, fdp!!, coloca ai no meu prato cinco ou seis bons pedaços, senão você vai levar a maior surra lá fora depois da festa."

Lamentável, mas tem que ser assim.

Não pode amolecer.

Nessa hora não há etiqueta social.

Se possível, ao amedrontar o incauto garçom, dizer as palavras mágicas acima ao mesmo tempo dá alguns leves bicudos com o sapato na canela dele.

Sim, leve bicudo, cuidadoso, porque senão, ele vai sentar a colher na sua cabeça e, sinceramente, não vai ficar bem para a festa.

Assim, com a delicadeza e a autoridade, não falha!

E finalmente, como um caçador de sucesso, admirado pela tribo, você retorna à sua mesa com o prato cheio do bom e do melhor, para a inveja de todos na festa.

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ADENDO: O texto não agrada algumas pessoas mais sensíveis,

mas é apenas uma brincadeira minha, como era a letra

da música infantil infame e nojenta do início do conto.

Peço desculpas.

Quando a ideia de subornar o garçom, sugerida pelo

leitor "Se...", eu não acato nem acolho, porque tenho

por princípio não subornar ninguém.

Gratifico sim o garçom, todo fim de festa, porque "gra-

tificar" no começo é uma forma disfarçada de subornar.

Um abraço,

obrigado pela leitura.

Samuel Sajob

maio - 2014