O ANO EM QUE MATAMOS McCARTNEY

Um pouco agitado, Eliezério espera-me à porta de seu fumeiro.

Não é hábito dele esperar-me assim.

Dai deduzo que tem novidade.

Entro e, antes mesmo de cumprimentar-me, leva-me ao balcão.

Seus olhos e expressão revelam que ele ganhou algum presente:

____ Veja...

Pega um envelope grande e pardo debaixo da prateleira, do qual retira com cuidado um grande papel dobrado.

Com carinho e cerimônia ele o desdobra sobre o balcão:

____ Lembra?

É a reprodução da capa do disco "Abbey Road", com os Beatles atravessando a famosa avenida.

Como ele, fico encantado.

____ De quem você ganhou isto?

____ Do meu filho. Encontrou em uma livraria em São Paulo e comprou especialmente para mim. Vou colocá-lo em uma moldura e afixá-lo bem ali de frente para a porta.

____ A sua freguêsia não vai entender nada e você vai ter que ficar dando explicações...

____ Exatamente! Explicar é o meu desejo!

Sério, como nunca o vejo:

____ O mundo precisa saber que Paul está morto!

A história começou a circular logo após o lançamento do disco.

Paul teria morrido tragicamente anos antes, num acidente automobilístico em mil novecentos e sessenta e seis, no início da carreira do conjunto.

Para não chocar o mundo, que vivia momentos delicados, a Scotland Yard, a CIA e o DOI-CODI resolveram montar uma farsa.

O beatle Paul foi trocado por um sósia.

Mas Lennon não teria concordado com a solução, de modo que anos depois, ao elaborar a capa, resolvera informar aos fãs mediante artifícios.

Com este desejo, distribuíra pistas por toda fotografia.

A principal é a cena do grupo atravessando Abbey Road pela faixa de pedestre, em fila, um atrás do outro, como uma procissão de enterro.

Paul MacCartney é o único que está descalço e de olhos fechados.

A explicação remeteria a um costume antigo dos ingleses de enterrarem os seus mortos sem sapatos.

Os olhos fechados dispensam esclarecimentos.

Depois, seria o volkswagen branco, do lado esquerdo, logo à frente do grupo, estacionado metade na calçada e metade na rua.

Sinal de que alguém do grupo atravessou a linha que divide a vida da morte.

É bem clara e visível a chapa deste fusca, onde se lê a inscrição: LMW 28IF.

Abreviação de "Linda McCartney Weeps": Linda McCartney Chora.

Ou, "Linda McCartney Widow": Linda McCartney Viúva.

28IF significaria: "28 Years IF alive": 28 anos se vivo.

Idade de Paul por ocasião da sua morte.

No grupo, em funeral, Jonh à frente e trajando branco, seria o pastor ou padre anglicano.

Ringo, de preto, colocado entre John e Paul, seria o agente funerário.

Paul, é claro, o defunto.

George, o último da fila e vestindo jeans, representa o coveiro.

Sua camisa de mangas compridas, arregaçadas nos antebraços, teria esta posição para facilitar a empunhadura de uma pá para cavar a sepultura.

Na rua, um carro parece vir em direção a Paul.

Como os ingleses dirigem na mão esquerda, a representação seria um sinal de que o carro já atingiu Paul e segue em fuga.

Clara evidência de que Paul morrera atropelado.

O carro da polícia, estacionado do lado direito, entre Ringo e John, parece estar atendendo alguma ocorrência.

Tipo um acidente de trânsito ou atropelamento.

Na calçada do lado esquerdo, na frente do carro chapa LMW 28IF, três pessoas vestidas de branco estão paradas, olhando os quatro que atravessam a rua.

Seriam os três Beatles restantes.

E, na calçada direita, sozinho, vestido de preto, na mesma linha dos demais e ao lado do carro da polícia, está Paul, do outro lado vida.

Eram muitos os sinais e passávamos os dias procurando-os: o muro simbolizaria um cemitério, o veiculo cuja chapa davam asas a tantas interpretações estaria estacionado no lado esquerdo porque Paul estaria no "oriente eterno", a faixa amarela contínua que divide a rua significaria a continuação do conjunto musical sem Paul, etc.

Imaginação é o que não nos faltava.

No entanto, caso alguém diga que eram meras ilusões, há um argumento definitivo.

Clara evidência da fraude e da armação criada pelos serviços de inteligências da época.

Paul segura um cigarro na mão direita.

Foi um erro do sósia - ou, então, a mais clara das pistas distribuidas por Lennon.

Todo mundo sabe que o verdadeiro Paul era canhoto.

Eliezério, verdadeira enciclopédia ambulante das inutilidades, sabe de cor e salteado todas estas coisas:

____ Sei que não acredita nisso Samuel ...

____ Pelo contrário ...

____ O disco foi lançado em agosto de mil novecentos e sessenta e nove.

Faz uma pausa, pensa e acrescenta:

____ Nesse mês de azar, Costa e Silva sofreu derrame e no seu lugar assumiu a Junta ... Em setembro Medici foi indicado substituto...

____ A história de Paul circulou nos primeiros dias dos anos setenta, após a posse de Medici e quando surgiram as primeiras denúncias de torturas ...

Faz outra pausa e acrescenta com tristeza:

____ Tem que acreditar Samuel... Foi quando começaram a morrer todos os nossos sonhos ...

......................................

"Abbey Road" foi o primeiro presente que dei para a minha mulher.

Obrigado pela leitura.

03-05-2007