UM PUNHADO DE CAL

Devo ser um espírito sem luz, porque se tem coisa que não entra na minha cabeça é a doutrina espirita.

Calma.

Antes que alguém venha retrucar, meditem na incoerência da frase.

Se reconheço que sou espírito, como não acredito nele?

Porque minha fé é incoerente, esta é a razão.

Acho que os espíritas têm uma visão mais tranqüila diante da vida e do caminho depois da morte.

E, mesmo sem acreditar na doutrina, aprendi a rezar e a pedir, (e a ser atendido), pelos ensinamentos de "pedi e obtereis", capítulo XXVII, do "Evangelho segundo o espiritismo", de Allan Kardec.

São boas e razoáves orientações.

Na vida espalhei armadilhas que às vezes se voltam contra mim.

Por este motivo, tenho andado a cata de desarmá-las, para caminhar mais tranqüilo.

Um dos métodos, para não cair nas próprias armadilhas, é não se sentir atraído por porta aberta.

Devemos procurar outras, mesmo fechadas, para espiar e avaliar o interior, antes de entrar e fazermos a opção.

Todo este lero-lero é introdução para contar um fato.

Fato que deixou-me preso numa das minhas armadilhas.

O pai de um amigo meu saiu pela manhã para passear, como fazia todos os dias, e não retornou para casa.

Estava iniciando tratamento para o mal de Alzheimer.

À tarde, alertado, ajudei nas buscas.

Plantões de policia, hospitais, necrotério (que horror!), albergues, viadutos e todos estes locais de má sorte que nos ocorre em momento de aflição.

Tarde da noite, muito tarde, avaliamos que estavamos na mesma posição por onde começamos.

Sem notícias.

Armamos roteiro para o dia seguinte.

Jornais, rádios, cartazes, perguntas e muitas voltas pelas redondezas.

À noite chegou e nenhum sinal do velho.

A cidade aqui não é grande, mas o tempo havia avançado o suficiente para ele estar longe, caso tenha saído a caminhar sem rumo.

Alguém teve a idéia de consultar uma vidente.

E indicou uma velha e honesta senhora, que não cobrava nada pelo trabalho espiritual.

Quando avaliava necessário, fazia de bom grado para auxiliar as pessoas.

Condição que dizem se tratar de bom sinal, visto que assim receberia orientações dos bons espíritos.

Uma médium com dom natural que, infelizmente, (segundo quem entende), não havia desenvolvido seu talento dentro da doutrina de Kardec.

Motivo, talvez, da sua fama de amalucada.

Sobre oráculos, deixo a opinião de Padre Brown, personagem de G. K. Chesterton, no conto "O oráculo do cão":

"A primeira conseqüência de uma pessoa não acreditar em Deus é perder o senso-comum e não poder ver os fatos como são. Qualquer coisa, de que todos falam, garantindo a sua importância, estende-se indefinidamente como perspectiva num pesadelo. E assim o cão é um agouro, o gato, o mistério, o porco, o mascote, e a barata, um escaravelho, se quisermos relembrar todo o jardim zoológico do politeísmo do Egito e da velha Índia: o Cão Anúbis e o grande Pasht de olhos verdes e todos os ruidosos Touros de Bashan; voltando aos deuses bestiais das primeiras eras, abrangendo elefantes, cobras e crocodilos - e tudo isso porque a humanidade tem medo de quatro palavras: "Ele foi feito Homem."

Ou seja, se perder a fé em Deus, passo a ser um estranho na terra - um estrangeiro na própria pátria.

Meu reino não será mais deste mundo e, por isso, "não serei compreendido por ninguém" (Epístola de São Paulo).

Teria a velha senhora perdido a sua fé, para incorporar o Cão Anúbis?

Razão para ser chamada de doida?

Com estas idéias na cabeça aguardo que meu amigo termine a consulta com a mulher - que para inspiração pediu-lhe que levasse roupas usadas pelo pai desaparecido.

Depois de alguma demora, ele trás as seguintes orientações:

"Seu pai está em uma tenda feita de paus e coberta com capim, numa lavoura de tomate, no Bairro tal, perto do Rio Tietê, tem na mão direita um punhado de alguma substância branca, matéria que está espalhada aos montes em torno do local onde ele se encontra."

Inacreditavelmente, (na minha opinião), eram palavras precisas.

O bairro é conhecido e distante cerca de quarenta quilômetros da cidade.

Longe e isolado.

Realmente, no local se cultiva tomate para a indústria.

Também é comum haver nesses lugares um barracão, um casebre, feito com material colhido no local, para sombra e descanso dos trabalhadores.

A substância branca era o único mistério que ninguém fora capaz de decifrar.

Saimos em caravana para o local e lá chegamos por volta da meia-noite.

Acordamos alguns assustados trabalhadores que nos informaram não ter visto nenhum estranho.

Orientaram-nos sobre os caminhos dos outros plantios.

Visitamos várias roças, todas de lavoura rasteira, fácil de localizar alguém.

Todas infrutíferas.

Os caminhos eram improvisados no pasto e na capoeira, e por este motivo andavamos devagar e nos perdemos.

Assim, somente com os primeiros sinais de um novo dia, é que chegamos ao último local indicado.

A colheita já havia encerrado e a plantação estava abandonada.

Ao canto, destacava-se um casebre de madeira e palha.

Em torno dela montes de uma matéria branca brilhava com as primeiras luzes da manhã.

Impossível ser identificada à distância.

Quando paramos de frente ao barração, o velho levantou-se dos fundos e dirigiu-se à porta.

Meu amigo saltou e abraçou fortemente o pai.

A mão direita espalmada do velho liberando um pó que ficou a manchar as costas do filho de branco.

Desorientado dirigi-me aos montes do estranho material, dispostos ao redor do rústico casebre.

Igual ao que um dia abrigou o Homem, no seu nascimento em Belém.

Estendi as mãos e esfarelei calcáreo, que seria aplicado para corrigir a acidez do solo.

Providência que, talvez, devemos fazer, de vez em quando, aos nossos paradígmas.

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G. H. Chesterton - (Gilbert Keith): escritor e ensaista inglês (1.874/1936); atacou o racionalismo, o cientificismo, o imperialismo, os revolucionários e tudo mais que encontrou pela frente. É conhecido autor das "Histórias do padre Brown".

27-04-2007