Cães e caos
 
O chefe da canzoada era o Delegado. Mestiço de Rottweiler com qualquer coisa. Cara de mau que impunha respeito. Mas só a cara mesmo. Não passava de um canzarrão bonachão, louco por uma brincadeira, uma farra ou estripulia. Ao contrário dos outros do grupo, vivia na rua. Não tinha casa. Toda noite montava guarda defronte à distribuidora de bebidas. Em troca, gozava da simpatia do lojista, que mantinha sempre uma vasilha com água fresca num canto da fachada da loja. Dormia ao abrigo da marquise.
 
De manhã, quando o homem chegava, o Delegado já o esperava desperto. Corria para recepcioná-lo ao descer da picape, sorriso na boca e rabo abanando.
 
O homem descia do carro, dirigia algumas palavras de carinho e afeto ao Delegado, que se desmanchava em festa, e elevava a porta de aço do estabelecimento. Entrava e logo voltava com um pequeno balde para renovar a água da vasilha. Na segunda viagem trazia uma generosa porção de ração. O cão não ultrapassava seu limite. Era educado, não invadia a loja. Aguardava toda a operação pacientemente do lado de fora.
 
Naquele dia, feito o desjejum, o cachorro partiu para o seu passeio diário, duradouro quase sempre. Na praça encontrou o Dico e o Almirante jogando conversa fora. Ambos tão vira-latas que era impossível sequer arriscar as respectivas ascendências.
 
- Olá, pessoal. Como foi a noite?
 
- Para mim, tranquila - respondeu o Dico. Enrolei-me no próprio corpo e acordei de manhã do mesmo jeito.
 
- Tive de espantar a gatarada que pensava em fazer festa no jardim da casa - falou o Almirante com pose de macho. Tentaram duas vezes, mas não dei moleza. Depois dormi como um bebê.
 
- Então vamos dar um rolê por aí. Que tal atiçar as cadelinhas na rua de baixo? - sugeriu o Delegado.
 
Seguiram os três amigos pelas ruas do bairro. Logo avistaram o Dunga, um baixinho de pernas tortas, cor de caramelo, tomando sol no jardim da casa.
 
- Dunga, vamos mexer com as cadelinhas da madame. Venha nessa - convidou o Delegado.
 
O pequeno esquivou-se por um vão mais largo da cerca e juntou-se a eles. Dobraram a primeira esquina e no meio do quarteirão detiveram-se diante de um enorme portão de ferro. No abrigo da casa bonita as três Poodles, branquinhas e de pelagem aparada e escovada com esmero, faziam pose de bem nascidas e criadas no luxo das dondocas.
 
- Oi, meninas. Chegamos - falaram os vadios em uníssono.
 
- Os quatro vira-latas de novo! Sumam daqui, respeitem nossa linhagem - uma delas ordenou.
 
- Só viemos admirar vosso pedigree e alva frescura - disse o Almirante.
 
- Vão ao pet shop hoje? - perguntou o Delegado.
 
- Fazer as unhas ou pentear os pelos? - provocou o Dunga.
 
- Não é da sua conta, baixinho desengonçado.
 
As três avançaram para o portão latindo alvoroçadamente sem, entretanto, chegar muito perto. Para provocar, em resposta os quatro latiam do lado de fora. Um coro infernal. Os cães da vizinhança alvoroçaram-se também e entraram no coro. As mulheres das casas vizinhas saíram nas janelas. A dona das cadelinhas veio ao jardim ralhar. Os quatro correram, mas em seguida voltaram.
 
Estavam a fim de deixar as cachorrinhas à beira de um ataque de nervos. Começou tudo de novo. As Poodles avançavam e latiam seu latido agudo ainda mais forte. A dona, muito brava, apanhou a mangueira do jardim e abriu água contra os quatro provocadores. Eles correram divertindo-se mais do que nunca e não voltaram. Continuaram pela rua, vitoriosos pela algazarra que causaram. Adiante encontraram o Rex e o Nero, grandalhões com resquícios de Pastor Alemão no sangue. Os dois uniram-se a eles e o grupo de seis seguiu em direção ao centro da cidade na maior descontração.
 
Ao atingirem a calçada do hipermercado perceberam dois gatos papeando distraidamente numa marcha sossegada em direção oposta à deles. Choque inevitável. Os seis estancaram e mantiveram-se à espera da ordem do Delegado para atacar os felinos. Antes disso, porém, a dupla deu-se conta da enrascada.
 
Os gatos, assustados com o imprevisto, brecaram eriçando os pelos e curvando o dorso. Ao mesmo tempo em que o Delegado incitava a turma contra os dois, eles arrancavam em disparada para a porta do estabelecimento. Gatos na frente e cães em fúria atrás.
 
Dentro da loja um dos bichanos virou à direita, para o lado das porcelanas e cristais. O outro, à esquerda. Instintivamente a pequena matilha dividiu-se em dois grupos. Rex, o Delegado e Dunga, atrás do primeiro. Dico, Almirante e Nero, no encalço do segundo.
 
O desajeitado Rex, enorme, não venceu a curva e resvalou o corpanzil numa estante de vidro repleta de jogos de copos e taças de cristal, que, com o impacto, espatifaram-se no chão claro da loja. Enquanto isso, lá na dianteira, o gato varou um expositor de jogos de jantar e café, de porcelana. Saiu ileso do outro lado, mas deixou pratos, travessas e xícaras em cacos. Com os cães ainda na sua traseira, correu para o lado das araras de roupas, ziguezagueando entre uma e outra. Dunga, o baixinho, passava bem por baixo das peças, mas Rex e o Delegado por onde passavam não deixavam nada em pé.
 
Em busca da salvação o gato encontrou o vão do provador de roupas, entre o assoalho e a parede lateral. Não sabia ele que os provadores eram fechados na frente apenas com uma cortina, em vez de porta. Os cachorros, latindo e fungando em volta, não demoraram mais do que um segundo para notar isso e invadir o cubículo. Uma senhora que tentava provar saia e blusa, saiu aos gritos correndo pela loja só de calcinha e sutiã. O felino escapou por onde havia entrado e a caçada continuou.
 
No outro lado do hipermercado, Dico, Almirante e Nero desesperavam-se atrás do segundo gato. Este, ao atingir a seção de frutas e verduras, achou que estaria seguro sobre uma banca entupida de tomates e lançou-se para o alto da pirâmide. Os frutos vermelhos escorregaram pelos quatro lados da banca e o bicho rolou com eles. Em disparada seguiu pelo corredor norte, virou à esquerda no primeiro corredor transversal até atingir a ala dos vinhos. Passou rente às gôndolas dispostas em fila, seguido por dois dos cães. Almirante seguiu pelo outro lado a fim de fechar o cerco na extremidade da fila. Entretanto, os atrapalhados perseguidores, correndo muito próximos ao mobiliário, raspavam as prateleiras, deixando para trás garrafas espatifadas e um mar de tintos de várias nacionalidades e buquês.
 
O aroma dos vinhos só foi abafado pelo das cervejas importadas, que da mesma forma tiveram suas garrafinhas desalojadas das prateleiras na outra seção.
 
A intervenção dos empregados do hipermercado só fez piorar a situação caótica. Divididos em vários grupos eles tentavam cercar os bichos de maneira a conduzi-los para fora. Os que andavam de patins aproveitavam para exibir suas habilidades sobre as rodinhas, abusando da velocidade e das manobras radicais. Um deles perdeu o equilíbrio na confeitaria e foi de encontro a uma estante de vidro de, até então, apetitosas tortas. As iguarias despedaçadas misturaram-se aos cacos de vidro espalhados pelo chão. Outro patinador não foi respeitado pelos cães e estatelou-se contra os iogurtes quando Nero passou entre suas pernas. Um terceiro empregado, engajado na perseguição a pé, perdeu o equilíbrio ao pisar nos tomates maduros esparramados e caiu sobre a pilha de ovos. Não restou caixa sobre caixa.
 
A correria dentro da área do hipermercado terminou  numa paisagem de pós-guerra e clientes divididos entre o pavor e a diversão, e prosseguiu no corredor de lojas e na praça de alimentação.
 
Três seguranças de uma transportadora de valores, em pose de generais e no passo de soldados em plena parada militar, saiam da casa lotérica. Um na frente com a mão sobre o revólver na cintura pronto para sacar, outro no meio carregando o malote de dinheiro e com a mão livre também sobre o coldre, e o terceiro, atrás, portando perigosa escopeta calibre 12.
 
Justo quando o trio alcançava a praça de alimentação para pegar a saída e entrar no carro forte, surgiram por trás os dois gatos com os seis cachorros na perseguição. Foi tudo muito rápido. O grupo de animais passou por eles como um furacão, derrubando o garboso homem com o dedo no gatilho da escopeta. O impacto da bunda dele contra o piso de mosaico fez com que o cérebro liberasse o indicador para pressionar o gatilho. Felizmente nesse momento o sujeito já estava com o costado colado ao solo, de modo que a arma, acompanhando a inclinação do corpo na queda, apontava para o alto. Assim, a chumbada acertou em cheio uma extravagante luminária de quatro grandes lâmpadas fluorescentes fixada do teto.
 
Hora do almoço. A maior parte das mesas ocupadas. Fila de gente servindo-se no bufê. Com o estrondo do tiro seguido dos estilhaços das lâmpadas voando para todo lado, o pânico foi geral. Bandejas largadas pelo caminho, pratos também. Copos e canecos de chope quebrando-se no chão, misturando-se a refrigerantes a granel. Todo mundo correndo para a porta que, de repente, ficou estreita. Por sorte ninguém se feriu e o lance mais estridente ficou por conta de duas bichas que se estranharam ao enroscar-se na saída tresloucada. Uma colocando a culpa na outra pelo embaraço, enquanto todos estavam preocupados em salvar a própria pele.
 
Na rua os gatos finalmente conseguiram livrar-se dos cães, escalando o muro de uma casa vizinha ao hipermercado.
 
- Turma, por hoje chega. Vamos descansar na praça, estou exausto. Valeu! - exclamou o Delegado.
 
Dirigiram-se à praça. Descansaram um pouco e cada um pegou o rumo da sua casa em busca de água e comida, porque nem os cães são de ferro. O Delegado foi para a distribuidora de bebidas.
 
- Veio mais cedo hoje, Delegado? - perguntou o lojista, estranhando ver o seu guardião, que costumeiramente aparecia apenas no fim do dia, chegando àquela hora.
 
O cão, com a cabeça enfiada na tigela de água, respondeu abanando o rabo. Quando sentiu a sede saciada e levantou a cara, o homem voltava com uma porção extra de ração e uma salsicha. Vida de cachorro.


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N. do A. 1 - Na ilustração, Meu cão de Márcio Camargo (São Paulo, 1975).

N. do A. 2 - Meses depois da publicação desta história, o cão que a inspirou morreu. Provavelmente não suportou os ferimentos internos adquiridos numa briga, apesar dos cuidados do dono da distribuidora de bebidas e de uma freguesa, que o medicaram e lhe deram amor e carinho nos últimos dias.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 17/05/2013
Reeditado em 25/08/2021
Código do texto: T4295756
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