Uma gatinha insinuante e o coroa babão
 
Na época fazia sucesso uma telenovela do horário nobre, na qual sobressaia-se um coroa boa pinta, assediado permanentemente pela amiga da filha adolescente até sucumbir aos encantos da jovem. Esse tema acendeu o pavio de muito paizão e animou o imaginário das adolescentes e mocinhas em geral, país afora 
 
Pois esse pai extremado acompanhava a filha numa tarde de compras e gastança no shopping da cidade, de porta em porta, quando foi posto à prova pela balconista de uma loja de grife.
 
A filha queria porque queria uma bolsa logo da loja mais cara do shopping, nesse ramo, e quiçá uma das mais caras do mundo. Grife internacional. Só os royalties deviam compor a metade do preço do produto. De nada adiantaram os argumentos do pai. Fez tanto que o levou até a porta. Feito burro empacado ele recusou-se a entrar. Avançou no máximo um metro linha adentro.
 
Enquanto a menina se esbaldava apreciando modelos e modelos, o coroa mantinha-se firme de sentinela na porta. Uma das mãos segurando sacolas e outra no bolso retendo o cartão de crédito, pois temia que ele se rebelasse indo ao encontro dos anseios da filha e prejudicasse as finanças do mês seguinte. Ao olhar para o fundo da loja, percebeu que uma das balconistas, a última, olhava para ele. Ao cruzarem os olhares, ela abriu o maior e mais cativante sorriso do universo. Imediatamente ele passeou os olhos pela retaguarda, voltando a cabeça para fora, e depois para os lados. Girou 360º até deparar-se novamente com a moça sorrindo. Pensou então que fosse uma conhecida da qual não conseguia lembrar-se naquele instante. Sorriu também.
 
Diante da abertura, ela veio ao encontro dele. Baixinha e meio clone da atriz que fazia o papel da jovem que tentava seduzir o coroa na novela. Linda, carinha de matreira. De balançar as estruturas.
 
- É sua filha? - ela perguntou ao aproximar-se dele.
 
- Sim - ele respondeu, esforçando-se para lembrar se a conhecia ou não, e de onde.
 
Concluiu que nunca a tinha visto mais bonita nem mais feia, hipótese esta totalmente impossível. E confirmou isso no desenrolar da conversa. Minutos depois já sabia quase tudo sobre ela. Estudante de arquitetura em uma universidade paga, de primeira linha. Frequentava o curso de manhã e trabalhava na loja à tarde para ajudar o pai a pagar o curso. Fez questão de dar o horário de entrada, saída e do lanche, ainda que ele nada tivesse perguntado.
 
O coroa sentiu-se o próprio galã da novela. Um brotinho lindo cortejando-o. Ficou imaginando sair com ela. Um restaurante, talvez. Tentava adivinhar o que ela estaria pretendendo. Com certeza ele seria mais velho que o pai dela. Não tinha dúvida.
 
Finalmente a filha fartou-se de olhar todas as bolsas da loja. Escolheu um modelo na esperança de convencer o pai mais tarde. Hora de ir embora.
 
O coroa despediu-se da garota com um até qualquer dia. A filha recebeu dela um galanteio. No corredor do shopping, perguntou:
 
- Você conhece aquela moça, pai?
 
- Não, só estávamos conversando um pouco. Eu esperando por você e ela sem clientes para atender no momento. Só isso.
 
Os largos corredores do shopping não eram suficientes para conter o entusiasmo do homem. Ora sentia-se um jovenzinho, ora o coroa mais enxuto do mundo. Os galãs de novela que se cuidassem. O próximo horário nobre poderia vir a ser seu.
 
À medida que venciam o percurso até o estacionamento, o entusiasmo foi dando lugar a pensamentos mais reais. Aos poucos ia caindo em si e colocando as coisas nos devidos lugares. Uma leve angústia passou a incomodá-lo. Ao entrar no elevador, não se conteve diante do espelho e resmungou:
 
- Por que você fez isso comigo, menina?
 
- O que foi, pai? Fale mais alto.
 
- Não é nada, filha. Acho que além de grisalho, estou ficando careca.
 
- Mas continua bonitão...
 
Ele não era chegado a novelas. Mas naquela semana fez questão de não perder um único capítulo. Queria se deliciar com a adolescente sedutora do folhetim, para recordar a balconista do shopping. Impressionante a semelhança entre as duas.
 
Na semana seguinte voltou ao shopping sozinho. Foi direto para a loja da moça bonita. Encontrou-a na porta conversando alegremente com um pequeno grupo de adolescentes. Provavelmente seus amigos. Guardou certa distância e aproveitou cada gesto que ela fazia. Embriagou-se mesmo com o menor músculo do seu rosto, um traço de sorriso. Linda!

Entretanto, não teve coragem de ir adiante. Deu meia-volta e com as estruturas seriamente abaladas dirigiu-se lentamente para o estacionamento. Sozinho no elevador, ao ver-se no espelho, repetiu várias vezes em voz alta, para a imagem dela que teimava em não abandonar sua memória:
 
- Por que você fez isso comigo, menina? 

 
***
 
N. do A. - Na ilustração, tela de Pino Daeni (denominação não encontrada).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 28/02/2013
Código do texto: T4163973
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