Contos da casa de farinha

À noite do terceiro dia na casa de farinha a conversa foi trivial mas até aguardente havia pra quem quis matar o bicho antes da janta. Como não se dizia nada de novo e já se encontravam cada um em sua rede, o negro Bastião perguntou se queriam ouvir alguma das história que seu tio, muito viajado tinha lhe contado. Nem todos responderam que sim mas, ninguém disse que não então ele começou com a seu falar manso. Disse que o seu tio Valte viajou muito pelo nordeste como tropeiro e que depois embarcou num navio na capital com destino a Belém e de lá foi também de barco pelo rio até Manaus. Seu tio viveu por lá muito tempo e não satisfeito, ainda viajou pra Mato Grosso e outros lugares. Bastião disse que era um menino, que contava uns dez anos quando seu tio voltou a residir no Ceará, que quando voltou, em suas conversas contava as coisas que tinha visto lá pelo norte. Contou a história de uma cearense por nome de Itelvina que, foi morta de forma cruel em Manaus, e que fazia milagres, sua catacumba era muito visitada no cemitério e lá estava escrito que “ uma mão perversa arrancou-lhe a vida” é tida como santa, e pessoas fazem promessas. Disse também que esse seu tio tinha visto por lá até uma capela dedicada ao pobre diabo, mas que esse diabo não era o cão e sim um homem dono de uma bodega que se chamava Antonio José da Costa, também morto de forma trágica. E disse que o seu tio havia presenciado um costume estranho lá no Mato Grosso, onde os homens depois do carnaval esperavam o fim de semana para fazerem o enterro dos ossos, só que não existia osso nenhum pra se enterrar. O negócio era assim: no domingo depois do carnaval os foliões chegavam á beira do rio com uns caixõeszinhos como que de defuntos, esses caixotes estavam cheios de comida boa e bebida e eles comiam bebiam e se divertiam como no carnaval, era assim o tal enterro, uma festa, uma folia.

Ao ouvir esse tipo de curiosidade, alguém do grupo de cortadores talvez por achar meio sem graça aquelas coisas que o Bastião falava perguntou se o tio dele, por lá não tinha visto algum bicho grande da mata, alguma onça pintada, jacaré ou coisas assim. O negro respondeu prontamente que sim, ainda lá no Mato Grosso o seu tio disse ter avistado um bicho-tatu que era um monstro, que era chamado de canastra e que jacarés e cobras sucuris eram vistos com grande facilidade pelas beiras de rios e estradas da Amazonia. Contava ainda que os que trabalhavam na borracha às vezes davam de cara com onças pintadas e estas nem sempre eram atacadoras como o pessoal daqui pensava.

Isso bastou pra que o Sarará desse uma risada de deboche para em seguida dizer que aquele tio do negro devia ser muito do mentiroso.

A reação do contador de história foi mais uma vez calma, falou que ele mesmo não era testemunha de nada disso que seu tio contava, pois apenas tinha viajado do Maranhão para o Piauí e depois pro Ceará, tinha visto coisa pouca, só não duvidava de nada porque quando se trata de coisa do nosso mundo é preciso se ir aos lugares pra ver como são as coisas por lá, e quando se trata de visagens e coisas do outro mundo, nem todo mundo tem os mesmos dotes de perceber e sentir as coisas...não gostava de inventar histórias mas, podia contar uma que ele mesmo viveu no Piauí que era a janta dos cachorros. Aí o Sarará disse:

- janta de cachorro? E isso é estória que se conte? Bastião era paciente e não deu ouvidos ao que o outro falava e disse que morou num vilarejo do Piauí e que por lá certa noite um conhecido seu lhe convidou para jantar. Disse que estaria recebendo uns quatro amigos caçadores com os seus cachorros para jantar. Mas não disse nada mais e foi assim: os caçadores chegaram com os cachorros. O dono da casa deu as boas vindas a todos e disse que a mesa da cozinha era pequena e que ia preparar a comida pros cachorros numas cuias ali no terreiro da casa. Ora eu não entendi por que aquele cuidado em dar de comer aos cachorros antes dos donos. Mas foi o que aconteceu, o dono da casa preparou a carne de gado boa, bem cozida e fez pirão de farinha e encheu as cuias pros animais. Os donos, cada um segurando seu cachorro ia dando de comer a eles segurando-os pela corda. Uma cuia daquelas dava pra fartar bem dois cachorros daquele tipo. Depois que os cachorros comeram até não querer mais, aí os donos os amarraram nas estacas da cerca e todos entraram pra jantar com o dono da casa e eu vi tudo isso. Eu que era apenas conhecido do anfitrião, fui convidado pra janta e fiquei por ali intrigado, sem saber muito bem o que dizer mas, por fim tive coragem de perguntar porque aquele costume de dar de comer aos cachorros antes dos donos. Pois me disse o dono da casa ser aquilo uma promessa feita a São Lázaro, por que ele, o dono da casa, tinha estado todo ferido, fêz promessa ao santo e ficou curado, então tinha obrigação de dar de comer daquele jeito aos cachorros que tivesse prometido convidar.

Foi aí que o Sarará resolveu criticar mais uma vez o nego contador de casos dizendo: - esse home só gosta mais é de contar esse contos que tem coisa de santo e tal, me diga uma coisa, você é macumbeiro?

- pratico minhas rezas como qualquer cristão não sou de frequentar dança de xangô não senhor, mas parece que o senhor tem medo dessas estória é ou não é?

- tenho medo de nada não, pra mim o que pode me faz mal é o que está vivo, nunca vi morto voltar, não tolero é estória besta de trancoso...

O assunto foi encerrado ali e os cortadores resolveram dormir, mas no dia seguinte a pilhéria começou, por que muitos deles acharam engraçada a janta dos cachorros e aumentava a curiosidade por mais estórias que o nego pudesse contar à noite.

Agamenon violeiro
Enviado por Agamenon violeiro em 28/07/2012
Reeditado em 02/09/2012
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