Posso Gritar?

- Você lutou pra caralho, cara.

- Eu nunca te vi daquele jeito.

Eu balançava sentado no banco do acompanhante do cadeirante do ônibus, e esses rapazes estavam em pé na minha frente falando sobre minha luta na academia. Meu ego estava nas alturas. Ah, a vingança! Havia feito de gato e sapato um cara que dois meses atrás havia me posto no canto do ringue e carimbado meu olho esquerdo com uma joelhada, durante um evento de troca de faixas.

- Ééé... - Falei, com a cabeça longe.

Os dois desceram e eu continuei dentro da lata velha.

Eu estava azedo, na verdade. Queria ter batido mais.

Eu estava com sangue nos olhos.

Eu estava dentro de um ônibus que me deixaria num local que detesto.

Detesto aquela rua escura que tenho que percorrer. Detesto a avenida margeada por um córrego de um lado e por um puteiro e depósito de areia do outro. Detesto o longo beco entre a parede do depósito e do puteiro que tenho que percorrer às cegas.

Então eu desço do ônibus com um humor amargo, atravesso a rua, atravesso um posto de gasolina e saio nessa avenida. Os comboios de caminhões iguais de empresas de combustível passam ao meu lado, tremendo tudo. A poeira sobe.

A meio caminho do beco, vejo uma silhueta vindo.

É uma silhueta coxeante.

Os caminhões deslizam na curva, na escuridão, e seus faróis fazem com que a sombra da silhueta se insinue por toda a extensão dos muros.

Eu conheço bem essa porra de silhueta.

Sim.

Conheço.

Sinto-me bem me sentindo mau.

Apresso o passo. Ele também apressa o passo.

Já não tem aquele vigor.

Já não está mais por cima.

Eu corro.

As pedras, a areia, os galhos e os sacos de salgadinho e latas de refrigerante gemem sob meus pés.

Ele tenta correr.

Ele alcança o beco primeiro. Porque é assim que eu quero que tudo aconteça.

Alcanço o beco.

Ele já não tem mais aquelas pernas fortes.

Aquela perna boa que me chutou nas coxas aos meus dez de idade.

Que a deixou roxa.

Eu tenho a perna mais forte de uma academia que tem quatro filiais pela Zona Leste de São Paulo.

Eu corro, alcançando-o na exata metade do percurso estreito. Eu corro, e chuto seu tornozelo esquerdo, que se enrosca em sua panturrilha direita. Ele cai de frente nas pedras.

Ele cai, e eu me divirto.

Passo por cima dele. Falo:

- Agora levanta!

Falo:

- Quanto tempo, não?

Falo:

- Pai, que saudades!

Eu estou fervendo de ódio. Falo:

- Pelo jeito, nada mudou.

- Você continua o mesmo drogadinho decrépito de sempre, pai.

Há uma música na minha cabeça. Da banda Refused. Traduza refused. É o que sou. Há um novo barulho ribombando por todo o meu corpo. Cada célula minha traz em si o assassino que trago em mim. New noise. Cada célula em mim, impulsionada pela memória da recusa de tudo o que me foi imposto - a existência, a assistência, a educação, a voz firme de um pai -, enlouquece. Mailer disse que o câncer nasce da negação do que as células pedem. Mailer disse que a loucura é o vapor da concessão ao que as células querem. Sou um sopro de loucura. Palahniuk diz que o Clube da Luta é formado por uma geração de homens sem pai criados por mulheres.

Falo:

- Levanta.

- Se tentar jogar areia nos meus olhos, eu juro que te mato. Mas mato bem lentamente.

- Você está um farrapo humano, pai.

- Você continua fumando pedra no banheiro de casa?

- Você continua apagando as luzes e se escondendo dentro do guarda-roupa quando algum traficante vem te cobrar, pai?

Falo. Falo. Falo.

- Você continua roubando ferramentas do quintal do vizinho mecânico e trocando por pedras?

- Você continua falando pros seus filhos que o cheiro que sai do banheiro quando você se tranca lá dentro por horas com o chuveiro ligado vem do chuveiro que queimou?

Falo:

- Levanta. Diz pra mim: seus filhos continuam ouvindo coisas dos amiguinhos como "seu pai, aquele nóia" ou "vi seu pai levando uma TV na biqueira"?

Ele levanta e força passagem.

- Não sou mais uma frágil criança de dez anos de idade que você roubou o videogame pra trocar por droga, pai.

Falo.

- Agora sou um homem, pai.

- Dois meses atrás, pai, ganhei essa cicatriz no supercílio, mas também ganhei minha quinta corda no boxe tailandês.

- Hoje eu fiz de gato e sapato o cara que me deu essa cicatriz.

- Você sabe o que é se preparar durante meses para alguma coisa e ela dar errado? Hoje deu certo. Hoje eu me vinguei. Fui contra meus princípios e humilhei o cara, pai.

Agarro a garganta dele, passo a perna por trás. Caímos os dois no chão.

- Tem treze anos que eu espero por isso, seu filho da puta.

Estou com o joelho esquerdo na barriga. Minha perna direita está na parede, me dando apoio. Minha mão esquerda está na garganta, apertando. Treze anos de cachimbada transformam um homem forte num esqueleto esquálido. Minha mão direita, erguida ao lado da minha orelha, cerrada com toda a força do meu ódio, desce no nariz. O barulho é surdo. Um baque. Quinze horas por semana de treinamentos intensos transformam uma criança chorosa num homem forte e seguro de si. Minha mão desce de novo, agora na boca. Desce de novo. Há sangue. Desce, sobe, desce, sobe. Meu peso está todo centrado no meu joelho, no centro de uma barriga de cerveja.

- Eu sempre quis distribuir esses socos falando "esse é por isso", "esse é por aquilo", pai. Esse aqui é por todas as noites que passei em claro quando você se foi de casa e minha mãe trabalhava à noite e eu dormia sozinho.

- Esse aqui é por todas as noites que eu dormi com um facão debaixo do travesseiro.

- Esse aqui é por todas as noites que eu cobri meu rosto com o cobertor ao ouvir um barulho suspeito no quintal, pai, pensando que era você, querendo se vingar de mim.

Parece que estou em cima de um touro. Mas um touro fraco, que domino.

Falo:

- Tyler quis destruir algo bonito para se sentir vivo.

Agora é meu cotovelo direito que desce. Ignoro os gemidos guturais.

- Eu quero destruir você pra me sentir vivo.

- Essa é pela vergonha que você me fez passar perante meus amiguinhos.

- Eu quero recuperar a infância que você roubou e deixou paranóias no lugar.

- Essa é pela tentativa de suicídio que cheguei tão perto aos dezesseis, pai.

Meu ódio só aumenta. Há pedras por todos os lados.

- Você não deve ter lido o Sobrevivente, mas essa cena me lembra aquele campo da Igreja do Credo, aquele depósito/cemitério de/com toda a indústria pornográfica americana espalhada por todos os lados. Com a capa do DVD Cus Arquejantes ao lado da capa do Fúria Anal ao lado de uma página aberta com manchas brancas imediatamente acima de onde deveria haver a buceta da mulher que está com as pernas arreganhadas forçando uma expressão sensual. Essa cena me lembra Tender erguendo a pedra e afundando-a no crânio de Adam.

Na minha mente alguém grita: Can I Scream?

Eu lembro que há esse soco inglês no bolso lateral da minha mochila.

A regra da academia é não entrar em briga. Mas, se entrar, só sair quando o outro estiver desmaiado.

- Essa é pela sua mãe, pai. Você se lembra dela?

- Você se lembra daquela mulher que fez de tudo pra te defender? Que te dava abrigo e dinheiro pros cigarros? Que queria te levar na igreja? Que rezava pra você arranjar um emprego? Que te dava banhos de sal grosso?

Falo:

- Você se lembra daquela velha filha da puta que foi sua mãe? Que depositava toda a culpa de você ser um merda - que ela cagou - em mim? Você se lembra da vez que ela puxou uma faca pro irmão da minha mãe quando você deu aquele sopapo na cara dela, na cara da minha mãe, e ele foi pra cima de você?

Desço a mão metalizada. Aluminizada. Há uma bola de ferimentos onde minha mão é parada. Há sangue em profusão. Há uma falta de dentes recente.

Bato.

Essa é por todas as vezes que vi minha mãe chorar.

Bato.

Essa é por todas as noites que ela passou em claro trabalhando.

Bato.

Essa é por todos os dias que ela passou estudando.

Bato.

Bato.

Bato.

Bato.

Bato.

Vejo luzes vermelhas. A tendinite queima meus trapézios.

Há algo embaixo de mim que não se move. Há um corpo.

Bato.

Bato.

Bato.

Bato.

- Posso gritar? Pai, acorde! Não há graça se você não geme.

Falo.

- Se você estiver morto, que graça terá continuar te batendo?

Abraço o corpo e choro copiosamente.

Abraço o corpo com um mata-leão frontal.

Choro copiosamente.

Sinto o pulso sem pulso.

Levanto. Com sangue nos punhos. No antebraço.

Há sangue salpicado na minha camisa branca e no meu buço.

Na minha testa.

Há muito sangue do lado direito do meu rosto.

Rolo o corpo pro canto, pra parede pertencente às putas.

- Que elas o abençoem, pai.

Me sentindo perfeito, num estado de graça, caminho com empáfia sobre as pedras pontiagudas que machucam meus pés. As estrelas continuam no mesmo lugar, mas com um brilho mais forte. Mais reluzente. Palahniuk, através da boca de Tyler Durden, diz que um momento é o máximo que se pode esperar da perfeição. Só se pode ressuscitar depois do desastre. Liberdade é perder toda a esperança.

Venço o beco e a imperfeição, sob as estrelas que me ignoram.

23/04/2012 - 18h10m

Referências:

Música:

Refused - New Noise

Madball - Down By Law

Livros:

Clube da Luta e Sobrevivente - Chuck Palahniuk

Um Sonho Americano - Norman Mailer

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 23/04/2012
Reeditado em 23/04/2012
Código do texto: T3629254
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