O dia em que Ricardo Morreu

O último dia de vida de Ricardo foi como todos os outros. Ele não poderia saber que seria a última vez que veria um amanhecer. Como sempre, Ricardo acordou, tomou café, tomou banho e saiu apressado, depois de dar um beijo superficial na mulher e acenar com a mão para as crianças. Ele devia ser rápido, senão perderia o ônibus. Depois, ele pegou o metrô e chegou na oficina, onde trabalhou como todos os dias até a hora do almoço. Ao sair para almoçar, Ricardo estava ocupado demais fazendo contas mentais para perceber a beleza do dia, que estava muito claro, sem uma nuvem a interromper o azul profundo do céu. Mas Ricardo não reparava muito em paisagens, ele sempre estava ocupado pensando e calculando: tinha as contas para pagar, o preço da escola da sua filha caçula, que começaria a estudar no mês seguinte, também o conserto do carro, cujo motor foi pro brejo. Tinha ainda o dinheiro para poupar e ver se sobraria dinheiro para finalmente tirar as férias atrasadas. ele se encaminhou para o restaurante de sempre, onde a comida não era muito boa, mas dava pro gasto, afinal Ricardo não ligava muito para comida, o importante era matar a fome. Ele estava sozinho, pois, mesmo tendo a reputação de ser sério e trabalhador, ele era bastante retraído, e não compartilhava muito com os colegas de trabalho.

Depois de um almoço insulso, Ricardo voltou ao trabalho. Tinha que se apressar para poder fazer o relatório que o chefe tinha pedido. Ao pensar nisso, ele xingou mentalmente o chefe. Esse relatório devia ser só para o fim do mês, mas ele exigiu que fosse adiantado, mesmo isso significando horas extra de trabalho. Ao voltar encontrou no elevador a nova secretária, Claudia, uma moça bastante tagarela que o irritava muito. Ele pensou no como era legal que as pessoas cuidassem da própria vida em lugar de sair falando por ai. Acaso ela não via que ele não estava afim de papo? Ele só queria fazer seu trabalho em paz. Ele pensou pela milésima vez no dia em que seria realmente feliz quando conseguisse sair dessa empresa. Já tinha marcado uma entrevista de trabalho para a semana seguinte, e seria muito bom se conseguisse o emprego. Finalmente felicidade! Com um salário melhor até daria para sair com a mulher para algum lugar, e levar as crianças a passeio, coisa que raramente faziam agora. Bom, na verdade ele não curtia muito sair, mas a patroa andava dizendo que precisavam passar mais tempo juntos.

Durante o dia Ricardo começou a sentir uma dor no peito, mas não fez caso. Não devia ser nada. Depois de terminar o serviço do dia, ele finalmente saiu do escritório. Cumprimentou alguns colegas que ficariam até mais tarde, saiu do prédio e foi pegar o metrô, que estava lotado. Que droga, e ele cansado como estava! Ainda teria que pegar o ônibus, que provavelmente estaria tão cheio como o metrô. Dito e feito: o ponto de ônibus fervilhava de gente. Ele aguardou impacientemente o ônibus chegar. A esse passo chegaria em casa depois de ter iniciado o jogo, e ainda teria que ouvir a patroa reclamar por ele, mais uma vez, ter esquecido de ligar para ela. Afinal, que chatice da sua mulher! Ligar para dizer oi? Mas ele diria oi quando chegar em casa! Ligar só atrapalhava a sua concentração no trabalho.

Quando Ricardo finalmente conseguiu subir no ônibus, sentiu de novo a dor no peito, mas dessa vez muito forte, e de repente pensou que alguma coisa explodiu dentro do peito. Quando deu por si estava no chão do ônibus, rodeado de pessoas que o olhavam assustadas. Depois disso ele fechou os olhos e não mais acordou.

E de repente se encontrou em um lugar diferente e vazio. Ele estava se perguntando onde estava e o que teria acontecido, quando ouviu duas vozes um pouco distantes, que iam se aproximando. Uma delas estava dizendo: -...mas, poxa, podia ter deixado esse para o final de semana, assim pelo menos ia morrer estando com a família né? -Que nada - respondeu a outra voz -não ia fazer diferença. Ele não passava muito tempo com a família, a maior parte dos finais de semana a passava trabalhando, limpando o carro ou vendo TV. Você sabe que tenho que me informar dos meus futuros trabalhos, e bom, ele era desses que passava a vida na mesma. -Mas coitado, morrer no ônibus! Nem teve tempo de falar com a família pela última vez... -Ahhh, teve sim, era para eu levar ele cedinho hoje, e eu dei a ele o dia todo, ai se não falou com eles não tenho culpa.

-Bom, nisso você tem razão... - Ricardo estava absorto ouvindo as vozes, e se espantou quando divisou duas figuras que estavam cada vez mais perto. Uma delas era baixinha e nariguda, e quando chegou perto dele disse, indicando uma direção: -Senhor Ricardo, por aqui por favor! Venha, que seu lugar vai ser assinalado agora mesmo. - E a outra figura, alta e escura, com uma cabeleira loira, quase branca, e uma face sinistra, lhe disse: -Vá Ricardo, meu amigo está lhe chamando. Não fique ai me encarando amigo! Foi um prazer encontrar-nos. Ainda vai demorar um pouco eu trazer sua mulher, mas bom, pelo que eu vi você não curtia mesmo a companhia dela, então não vai ficar tão mal assim.

Ricardo, ao ouvir isso, percebeu que eles estavam falando dele, e sentiu-se desfalecer. Porém, a Morte lhe disse: -Não, meu caro, aqui não se desfalece não, agora você não pode mais fazer isso. Fica calmo, afinal você levou uma vida tão monótona que não fazia diferença morrer agora ou morrer de velhice. Sempre que eu vi você estava vendo TV ou trabalhando, então não penso que se importe muito pela sua família. Vai, anda logo que eu tenho que ir fazer outro serviço...

Viviana Carolina
Enviado por Viviana Carolina em 12/11/2011
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