O Cérebro de “Zélia Acidentária”.

Quando ouvi falar de “Zélia Acidentária”, a mesma já havia passado desta pra pior há muitos anos... Era uma história curiosa...

Diziam as boas línguas que tudo se sucedeu quando fora atropelada, na cidade de João Pessoa, por um caminhão de coleta de lixo, no ano 1.965 da era Cristã, quando The Who aparecera para o mundo, sua banda preferida, após a “transmutação”.

E que com o acidente seu cérebro rachou do lado esquerdo e soltou um pouco de massa encefálica, a qual ficara impregnada no asfalto tórrido por duas semanas, sem que a limpeza pública conseguisse removê-la. Algo misterioso e pegajoso. Tentara-se de tudo, todo tipo de produto, mas nada desgrudava aquela merda do chão.

Por sorte, ou azar, sabe-se lá, Zélia não morrera naquele infortúnio; fora resgatada a tempo por um carroceiro, berrando, estatelada, aos prantos, pois sua bunda torrava no asfalto quente.

Algumas semanas depois do acidente, e ainda com diversos pontos na cabeça, Zélia principiou a pensar diferente, diziam. O povo diz muitas coisas, como se sabe.

Deixou a beatice e comprou uma Harley Davidson das mais baratas, financiada em sessenta prestações pelo banco fibrose. Mandou estilizar a bandeira do Estado da Paraíba no tanque de combustível; pediu demissão e resgatou seu FGTS de trinta anos de serviços prestados como Ministra de Eucaristia e balconista das casas Bahia, e saiu pelo mundo..., sem rumo...

Antes do acidente vivia no vácuo, acuada, olhando pro céu, esperando salvação, com medo de tudo, com um tique de coçar, com a língua, um dente imaginário, perdido num acidente de bicicleta quando ainda era adolescente. Nunca se soube o porque de não botar uma coroa ou uma jaqueta. Vai saber...

Sem a mínima perspectiva de ser feliz de novo na vida, se recordava sempre, mas com receio, pois temia e repreendia até seus pensamentos mais pueris, advindos dos lapsos mais recônditos de sua infância, quando ainda contava doze anos de idade, momento em que “andara dando” uns beijinhos no Juquinha leiteiro, na esquina, aquela “pegação” toda... “Pecado!, Deus perdoe!”.

Depois disso, com a fluência hormonal da puberdade jorrando ao léu, a sociedade lhe impôs uma viseira e uma cinta de castidade, para que fizesse como todos queriam que fizesse. Era manipulada, com medo do “cão”, da “tentação”, não querendo saber dessa tal felicidade que andavam por aí espalhando, como o sopro do demônio; era preciso o martírio, a cinta de silício socada no rabo, ser temente a Deus, ao diabo, levar uma vida penitente... Era preciso! Era preciso! Deus castigava!

Ocorre que, como dizem por aí, depois do acidente, aquela porção de massa encefálica, a do lado esquerdo do cérebro, que ficara fritando no asfalto, e que com muito custo se despregara com jatos diários de ácido, foram perceber que era justamente a fração podre de sua cabeça, que se esvaiu feito pus, fazendo com que Zélia, a beata, se transformasse em Zélia Acidentária, “a mulher gato”, motoqueira selvagem, livre das amarras e preconceitos sociais...

Viveu assim por doze anos, até dar de frente com um caminhão amarelo, Mercedes Bens 1113, que a absorveu juntamente com sua harley de bandeira da Paraíba, feito um inseto estatelado no pára-brisa...

Talvez, quem sabe, pois da vida e da morte nada se sabe, caso se mantivesse presa em seu tugúrio penitente, vivesse, marasmaticamente, temente, até uns noventa ou mais anos, fedendo em algum canto de igreja...

Dizem, apenas..., pois do povo se ouve tudo...

“É melhor morrer livre do que viver presa!”, era a frase estampada em seu capacete preto...

Savok Onaisirk, 28.03.11.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 26/03/2011
Código do texto: T2872134
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