Trem para Moscou.

Meu I-pod está com pouca bateria, espero que dê para completar a viagem. Queria ter muita carga, para que durasse muito tempo. Olho pela janela e vejo o tempo passando, as coisas mudando, tudo se tornando outra coisa...

“- Tudo ficará bem...”

A única imagem que vem em’inha mente. Você. Olho novamente: o frio da Rússia confunde-se com o calor d’meu amor. Tudo muda tudo passa... A paisagem está tão diferente. As flores da velha Paris eu esqueci, ou melhor, tento esquecer. Mas inda sinto o perfume. A velha brisa que me faz diferente...

"-Moscou última parada!”

Ouço passos, o trem para. Ouço algo que me sugiro ser russo. Abro minha cabine, o frio tomou conta de meus olhos, como...

- Sir, can you tell me why the train stopped?

- Arrived, is Moscow!

Senti uma paz, um frio, como naquela noite. Já faz sete anos, mas sua imagem ainda me assola como uma velha doença, incurável. Mas com a qual eu já aprendi a lidar...

Você se foi, levando junto um tanto de mim. Partes que eu mesmo desconhecia ou que julgava nunca ter. Tinha certeza que minhas tardes em Moscou não seriam mais as mesmas...

Era estranho eu tentar seguir sozinho, como se tudo tivesse mudado. Não queria que as coisas tivessem mudado que o tempo passasse. Eu era Jaime Montèz, hoje sou somente um passageiro deste trem. Antes eu era feliz, hoje eu não sei...

Hoje eu não a tenho. Nunca soube se realmente a tive, se algum dia teria. Estranhei perder algo que nunca tive. Algo que sonhava em ter, algo que talvez fizesse parte de mim. Faz sete anos, e sua memória ainda me rompe na noite, no dia... Se eu pudesse contar as voltas que dei, o tempo que perdi antes de encontrá-la.

Foi em uma tarde de junho, o frio ainda tomava conta de mim, mas o despontar de uma nova estação fazia-me continuar. Foi no Les Jardins D Eiffel em Paris que nos conhecemos.

Ela caminhava com uma criança, supôs ser seu filho. Mais tarde descobri que era seu sobrinho, e que estava na casa de sua irmã. Por enquanto, continuei a supor o que havia dito inicialmente. Caminhavam tão calmos serenos. Ela sorrindo para as outras crianças, e suas supostas mães. Eu olhando-a. Temia que ela notasse minha presença e, ao mesmo tempo, ansiava por este momento.

Seu nome eu nunca soube. Nunca saberia. Ela não quis me dizer, não a culpava. E durante quase um ano, nos encontrávamos todas as quintas-feiras. Era estranho, ela sabia mais de mim do que eu mesmo. E eu, sabia sobre ela, menos da metade do que suponha saber.

Em nossa última quinta ela me disse que voltaria para casa. Eu disse que a acompanharia. Ela disse que eu não poderia. Que não seria para casa de sua irmã, e sim, para a sua. Eu não compreendi, mas com o soar das buzinas de Paris eu, então, entendi. Ela então partiria...

- Você não pode me deixar, eu te amo.

- Não me diga isso...

- Por quê? Tem medo de me amar?

- Sim e não. Não tenho medo de te amar, mas temo por você me amar.

- Por quê?

- Eu tenho de partir, nunca mais voltarei para Paris... Precisa ser assim, tem de ser assim.

- Não vá. Você sabe que não tenho ninguém, não tenho nada...

“- Tudo ficará bem...”, foi sua última frase antes de partir. Tomou o pobre menino pelas mãos e se foi. Eu tentei gritar por você, chamá-la. Mas não conseguia, não podia. Foi tão estranho, fiquei com medo. Sozinho...

Minha mala estava um pouco pesada, era muito ruim carregá-la. Quando a puxei, ela acidentalmente se abriu, e tudo caiu. Teria muito trabalho para juntar todas as roupas... Que estranho, uma foto no meio da bagagem. Era dela.

Os dias foram se passando, e eu tentava esquecê-la. Não podia. Era mais forte do quê eu. Eu a amava, e ela também. O quê a impedi-a? Talvez a família? Talvez algum tipo de perigo? Não. Era apenas medo. Só medo, nada mais que puro e inapto medo. Que eu havia despertado. Eu me odiava por amá-la, e ela me amava por um tanto. Eu queria matá-la, mas eu a amava-a tanto que não poderia fazê-lo. Não teria coragem seria cruel demais comigo. Eu passei horas e horas olhando a porta da casa de sua irmã, esperando que ela saísse. Mas nunca acontecia nada, tudo continuava sempre como foi. Eu lá parado e ela do lado de dentro, ou talvez não.

Foram-se os dias, os meses. E ela nunca apareceu.

Que bom! Agora só faltava um par de meias. Eu não queria nada mais que isso, guardá-las e abandonar este mundo. Deixar Paris para trás. Esquecer todos aqueles horríveis anos...

Eu decidi parar de procurá-la. Decidi viver. E vivi. Casei-me dois anos depois. Uma mulher, que diferentemente dela, não me conhecia menos da metade do que eu esperava. E eu, não a amava. Nunca consegui esquecê-la, mas devia. Eu agora tinha uma família. Minha esposa estava grávida. E ela, nunca mais voltaria...

Já se passaram três anos, mas sua memória perturba-me todas as noites, manhãs. Cada dia que passa, ela parece ficar mais forte. Como se você estivesse voltando, mas nunca volta...

Os dias novamente passam. As tardes tornam-se mais difíceis. Minha filha nasceu, e eu, levo-a todas as quintas naquele mesmo parque. Esperando que você esteja lá com aquele garotinho. Mas nunca está. O tempo foi passando, a vida mudando. E a cada dia, eu amava mais minha esposa. Só que nunca deixei de te amar. Nunca deixarei.

Hoje, faz cinco anos. Minha filha tem quatro anos. Eu a amo. Minha esposa está doente, tudo diferente. Mas hoje é quinta: “dia de parque”. Eu não posso deixar minha querida sem ir ao parque. Ela precisa disto, mais que eu precisava de você. Que estranho. Hoje eu vou ao parque. Mas hoje é diferente. Não por amar minha esposa e minha filha. Não por ter esquecido você. E sim, por não esperar que você apareça. Chegamos. As crianças continuam do mesmo jeito. As mulheres, mães, tias, babás, todas estão do mesmo jeito. Somente eu mudei.

Tento abrir a cabine, como naquele dia eu tentei abrir a porta do carro. Senti a maçaneta fria. Como a do trem. A do trem está fria pelo frio de Moscou. Já a do carro, estava fria pelo frio que senti. Eu vi aquele menino. Eu o conhecia. Era o mesmo menino, maior claro. Mas era o mesmo. Desci do carro e deixei minha filha correr um pouco ao meu lado. E fomos caminhando. Seguindo aquele menino. Precisava saber... Ele então parou ao lado de um homem e uma mulher. Não era ela. Deveria ser sua irmã.

- Olá, bom dia. Ele é seu?

- Sim, sim. Sua?

- Sim. Como ele se chama?

Não tive tempo de ouvir seu nome, meu celular tocou. Era do hospital.

- Sinto... Fizemos tudo o que... Infelizmente...

Ouvi poucas palavras, como se nada mais fizesse sentido. Sentei-me no banco, e coloquei minha filha sentada no meu colo.

- Tudo bem, eu estou indo para aí...

Não podia ser verdade. Ela morreu sem ouvir que eu a amava. Não. Eu precisava dela. Eu a queria. Como nunca quis antes... Pobre criança, como dizer a ela.

- Desculpe, mas você está bem?

- Sim estou. Deixe-me perguntar, você sempre veio a este parque, com ele? – disse apontando para o menino.

- Não, minha irmã o trazia...

- E como ela está?

- Desculpe-me, mas quem é o Senhor?

- Não sei se ela disse. Eu sou Jaime...

- Ah meu Deus. Você é o Jaime. Achei que nunca o encontraria.

- Como assim?

- Ela me deu essa foto, e me fez jurar que eu lhe daria...

- E como ela está?

- Ela faleceu, faz cinco anos. Ela estava doente quando lhe conheceu. Uma espécie de câncer. Algo incurável... Achei que soubesse?

- Não ela nunca me disse...

A foto era tão linda. Ela sorria. Eu também. Foi um homem no parque. Nunca mais o vi. Minha filha na época, perguntava-me sobre a foto. Sobre a mãe. Era uma linda foto. Só restava uma coisa para ela... A morte. Então, eu a rasguei. Foi difícil. Não queria ter feito isso. Mas precisava. Não seria feliz tendo você em minha memória. Na hora que a virei, notei algo que nunca havia notado. Havia uma inscrição:

“-Tudo ficará bem...”

Quase a rasguei, mas algo dentro de mim impediu-me. Voltei-a para dentro da mala, como voltei para o hospital naquela tarde. Pobre esposa, pobre filha. Pobre dela. Nunca soube o que realmente fazia sentido. Talvez elas fizessem. Talvez não.

Faz sete anos desde que perdi minha esposa. Minha amada esposa...

Faz sete anos que eu perdi a jovem, que em verdade, nunca foi minha...

Faz dois anos que minha filha mora com a avó...

Faz uma vida inteira que eu tento sair desta cabine, e não consigo. Faz sete anos. Mas a imagem de minha querida, sorrindo para todos no parque, continua em minha mente. A imagem de minha filha, sorrindo dizendo que era quinta. A triste imagem de minha esposa. Na cama, sem vida. Tantas imagens. Uma única foto. Tantas coisas aconteceram. Faz sete anos...

Mas é como se fosse ontem. O tempo muda, as paisagens mudam. Tudo muda. Somente eu continuo do mesmo jeito. Como se tudo mudasse, e muda. Mas eu. Continuo parado segurando a mala. Tocando na fria maçaneta da cabine.

"-Moscou, última parada!"

Ouço o russo de novo. Agora é tarde. Abro. Desço. Mas o que fazer na Rússia? Por que vir para cá? Podia ter apenas me mudado de Paris... E mudei. Vim para o lugar mais distante que poderia. Não por toda vida. Apenas até que eu as esqueça. Que esqueça minha querida esposa e “minha” querida amada. Apenas minha filha. Apenas dela irei me lembrar... Assim eu espero.

“-Tudo ficará bem...”

Todos os dias esta frase me volta à mente. Como se fosse uma frase de efeito. Hoje eu não sei. Mas amanhã, quem sabe. Quem sabe amanhã tudo fique bem... Quem sabe o frio da Rússia faça tudo ficar bem... Quem sabe...

Autor: Foram quatro minutos. Durante quatro minutos ele hesitou descer. Pobre Jaime, ele encontrou um modo de esquecê-las: quando estava descendo do trem, um homem tirou uma arma e atirou contra todos que estavam na estação. Uma mulher, um maquinista, duas crianças, ele mesmo e Jaime. Jaime encontrou o que buscava: sete anos depois ele encontrou um modo de esquecê-las. E esqueceu...

Obs.: Para as mentes curiosas, a música que tocava no I-pod de Jaime era: All Flowers In Time – Jeff Buckley and Elizabeth Fraser.

"Leiam minha apresentação: http://www.recantodasletras.com.br/cartas/2394709"

Le Vay
Enviado por Le Vay em 06/06/2010
Reeditado em 23/07/2010
Código do texto: T2303118
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