" RETROSPECTO"

Corria a noite de Natal de 1998. Na antiga mansão dos Silva, os filhos assomavam-se à porta do quarto do pai, sentidos por vê-lo naquele estado de letargia oriundo de um quadro de demência irreversível.

De súbito, porém o espírito do Dr. Jair da Silva libertou-se do seu claustro psíquico e pôs-se a espreitar o passado.

Reviu-se, menino, pobre, maltrapilho, sujo, correndo por entre os valões que recortavam seu casebre miserável. Para distrair-se, perseguia implacavelmente borboletas, vagalumes, os quais colecionava com visível dedicação.

De dentro de sua casa, a voz metálica de sua mãe zunia como um vento gelado e cortante. Pobre mulher! Jovem ainda,mas singularmente envelhecida e embrutecida pelas provações diuturnas e impiedosas!

O tempo passou e graças a um intelecto invejável Jair conseguiu colar grau na conceituadissíma Faculdade de Direito do Largo São Francisco. De posse do diploma travou uma incansável luta até que em um belo dia logrou êxito ao conquistar uma vaga para trabalhar em uma das maiores bancas advocatícias do Brasil.

Ignorava, ele entretanto, que em tal recinto estaria delineada a estória de vitória e também de fracasso de um homem!

O destino, este cruel manipulador de existências cuidou-lhe de apresentar à Sofia, moça detentora de uma estoante beleza primaveril que emergia de seu olhar lânguido e luxuriante!

Hipnotizado por aquela voluptuosa visão, a ideia de casamento viciou-lhe inteiramente a vontade,tornando-se uma verdadeira obsessão!

Por fim, casaram-se,mas Jair jamais conheceu a felicidade ao lado daquela mulher idealizada e deveras desejada!

Por vinte anos a fio nunca conseguiu de fato elucidar a teimosa incógnita que enredava as atitudes contraditórias de sua mulher. Às vezes, Sofia entregava-se ao amor em um só hausto de permissividade e loucura, de outras tantas cumpria com notório enfado suas obrigações conjugais.

O ciúme passou a corroer seu íntimo e em pouco tempo adonou-se inteiramente de seu ser, privando- o dos sentidos.

A morte " subia a passos de seda" a elegante casa do causídico e sua presença ia aos poucos tomando o imaginário de um homem pertubado e descrente.

Não podia sequer avistar sua mulher empreendendo uma conversação mais demorada com algum amigo, em lugar de um diálogo protocolar, ouvia os sussurros provocativos das alcovas.

No dia fatídico Sofia escrevia cautelosamente uma carta a um destinatário incerto. Ignorando seu mórbido e cruel fim, a mulher imersa em seus pensamentos não percebeu a chegada do marido. Protegido pela penumbra absolvidora do entardecer Jair postou-se atrás de Sofia, engatilhou a arma e acionou o gatilho. Em poucos instantes, um corpo formoso de mulher tingia de rubro os pontos raros do tapete persa!

Inúmeras diligências foram encetadas, mas a autoria do crime para sempre permaneceu ignorada.

Jair, não contava, todavia que o delito embora perfeito em sua execução pudesse acarretar em seu resultado consequências tão danosas!

Nunca conseguira de fato esquecer a imagem daquela mulher idolatrada, e em vão tentava esquecê-la aplacando seus desejos viris no corpo de outras que apenas assentiam em tal prática visando apenas uma recompensa pecuniária ou pelo menos sua promessa.

Como que do nada, a porta do quarto fechada, de chofre se abre! Jair,move-se em direção ao estrondo e vislumbra Sofia cadenciando novamente seus sensuais passos rumo à cama de casal! Seu olhar penetrante, vivaz, sua pele rósea trescalando a perfume francês inebria-lhe os sentidos!

Sua boca pintada de vermelho, abre-se em flor e ela diz melodicamente:

_ Lembra-se, meu amor de nossa viagem de núpcias? Recorda-se das bailarinas espanholas, dos corpos esculturais a dançar o flamenco? Lembra-se que dizia-me que minha sensualidade candente era mais flamejante do que o bailado destas mulheres? Lembra-se de nossos beijos ardentes à beira da cama? Rememore o passado... Veja-me novamente com os cabelos loiros presos em um coque, soltos com vagar, de minhas melenas encobrindo minhas costas já nuas...

_ Em um instante de loucura você ceifou meus quarenta anos de vida, mas arrancou também sua seiva! Veja você agora, largado nessa cama , tal qual um vegetal...

_ Por que chora, arrependimento? Não, não jamais o perdoarei!

Ouve-se na sala um barulho surdo de um corpo caído ao solo. Os filhos desesperados, abrem a porta e se olham estarrecidos! Jair está morto, e a seu lado está Dolores sua filha mais nova que naquele dia resolvera usar o vestido floral de sua mãe...

* Nota da Recantista: Trata-se de um conto absolutamente ficcional!