Sintoma

Já fazia alguns anos que a família havia notado a mudança de temperamento nele. No começo, as coisas eram entendidas como graça peculiar da idade, o avanço do tempo no corpo de uma pessoa causa nuanças jocosas e por que não, liberdades prisioneiras vão se banhar de sol. Quem sofre com isso são os acompanhantes. O histórico neurológico da família criava uma vereda severa e escura. Dos seus irmãos, dois faleceram de problemas oriundos destes genes, das irmãs, duas definharam de doenças raras, aquelas que liquidam com a dignidade de qualquer santo. A eutanásia, hipótese divina, vive no íntimo, superfície sem lua. Todos desejam fazer morte, mas a vida esconde na subjetividade campos de pobreza, estreiteza constitutiva, e os interesses humanos conjuntamente com suas necessidades são ainda mais esquálidos, mesmo assim, a luz que encaminha um olhar tem certa beleza.

Aos poucos a personalidade dele ia aliterando. Tanto o filho, bem como as filhas e nem mesmo a mulher, o tempo extraía dele a importância de todos. A doença tem seus mecanismos e suas fontes, e tanto os mecanismos quanto as fontes são invariavelmente inteligentes. Dia a dia, paulatinamente, o jogo do contente acontecia e a consciência perdia suas plantações lógicas e os poros de afeto. A comédia é o trágico com os outros e o trágico não narra a si mesmo. Uma outra consciência é a testemunha perfeita, cruel, cansada, temerosa. A família vivia esta consciência e no bem dizer da verdade a consciência outorgava a existência do amor. O amor evadia da memória, e como num escorregador que tudo depende da inclinação, o parque se tornou perigoso, e o que era antes diversão, agora é desnudo sofrimento. Sentido seja feito, ano após ano, a juventude quedou-se em velhice precocemente. A doença empobrece o sujeito assim bem como o significado de viver se abala de tal modo que o que outrora tinha valor agora não passa de mero artifício. Somente o silêncio recolhe os cacos. À medida que ele se perdia na densa floresta, toda a família gritava por socorro. Ele não ouvia e embora o socorro existisse não incendiava o sofrimento. Assim a vida desbotava, entre cruéis acontecimentos o hilário nasceu.

A cidade na qual viviam possuía um calor que massacrava o mais forte dos calangos. A casa habitava um bairro simples e calmo, afastado não era do centro. Numa noite morna e transparente, (o céu e as estrelas banhavam-se de lua, pelas ruas lentas do interior mineiro podia-se beber serenatas e rostos pelas sacadas, camisolas e desejos se avizinhavam nas canções barcas do amor) sozinha ela via televisão na sala, bem ao lado construída foi a cozinha. Passeava na tela da televisão uma novela sem cheiro, pálida. Deitada no sofá, com suas pernas dobradas, ornadas pela carne branca e suculenta, alva como uma ricota anêmica na mesa do café, assistia a novela enternecida pela companhia das crianças — adolescentes são crianças grandes, desconhecem ainda a força macabra dos próprios corpos, mas são repletos de uma alegria altercada de vinho — mirava na tela o enésimo beijo daquele dia, havia um silêncio maroto no ar, o linguajar da vida na maresia das bocas. Entre as propagandas, um entre sai de cozinhas. Fez-se um silêncio duradouro, o suficiente para que o atrevido e faminto penetrasse na sombra acesa da cozinha em busca da meia-noite. Dementemente um riscar de ruído assaltou a sala, atenciosamente a mulher veio ver o que era, em clara comoção gritou, não bastou esconder atrás do fogão sua pertinácia, Vitor veio como um gigante, e verdadeiramente alto ele era, esguio e altivo, em tempos idos alegre e disposto, rapidamente caçou o invasor rato, entre gritos de medo e a alegria da coragem a compaixão adoeceu, mandou chamar um táxi e partiu depois de alguns minutos de interior. Na estrada soltou o invasor, são e salvo no mato torpe, ao chegar em casa obsedado pelas consciências disse, pra que matar o pobre bichinho é dele o reino do céu.

Toya Libânio
Enviado por Toya Libânio em 17/11/2008
Reeditado em 30/01/2017
Código do texto: T1288221
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.