Sem mais nada dizer ela pegou o interfone, discou um número e durante alguns segundos sussurrou palavras entremeadas de rápidas pausas enquanto escutava alguém falando do outro lado da linha. O homem bêbado a olhava arqueando as sobrancelhas, passando a língua nos lábios secos e franzindo a boca.
A moça colocou o fone no gancho e dirigiu-se a ele com educação simulada: “A Dra. Gertrudes deseja falar com o senhor. Por favor queira dirigir-se àquele corredor da direita, suba ao primeiro andar e procure pela diretora.” Em nenhum momento ela o olhou de frente enquanto falava, como reconsiderando a atenção dada a princípio.
Sem nada dizer, cambaleante, o homem se foi.
A diretora era baixa e gorda como um barril de cerveja, tinha os olhos esbugalhados e vermelhos, os óculos de hastes douradas se destacando no rosto balofo, lábios finos e sem qualquer sensualidade, um olhar de felino enfarado pela alimentação farta. Usava um vestido deslumbrante e exibia jóias nos braços e no pescoço. Mostrava-se irritada à aproximação do homem bêbado. Por conta da fúria quase incontida, batia o pé direito no chão. As pernas estavam cruzadas e deixavam entrever coxas abundantes e habitadas por celulite. Ao seu lado, dois homens, e eles também não logravam dissimular a raiva. Andavam de um lado para o outro a resmungar, as mãos cruzadas para trás, o inferno nos rostos contraídos.
Diante daquela figura embriagada, totalmente diferente do homem que lhes aparecera com o engodo mais deslavado e criminoso que jamais testemunharam, a Diretora da maternidade não pode reprimir o desdém. “Muito bem seu Xavier, ou Joaquim, ou Tiradentes, seja lá que diabo de nome tenha, sua mentira inicial serviu par nos enganar, mas agora queremos o pagamento de todo o trabalho que tivemos com o troço de sua mulher!” As frases lhe saíam aos sibilos, serpentinas como se provindas de uma víbora furiosa, e o ar empestava-se de peçonha. Por instantes, os dois homens nervosos observaram-no ansiosos, os punhos cerrados agora, fazendo enorme esforço para conter o ímpeto de agredi-lo.
Embora sabendo de antemão que nada agradável seria a recepção na maternidade, e apesar de estar alcoolizado, o homem sentiu-se surpreendido e chocado pela rispidez da mulher gorda e os olhares furiosos dos homens em sua companhia. Desnorteado, a voz pastosa, procurando ser o mais objetivo possível, malgrado a embriaguês, ele replicou: “Dra, to porre, sim muito bebão mesmo e seis que isso não interessa a nenhum de vocês, mas me encontro nessa situação justamente para criar coragem para vir até aqui. Quero minha mulher e meu filho e estou desempregado, não tenho dinheiro para pagar as despesas da maternidade, nenhum puto no bolso. Podem me prender ou me matar se quiserem.” Os interlocutores sentiram um forte desejo de esganá-lo, de esfolá-lo ali mesmo. “Vamos botá-lo na cadeia, sim, seu...seu...seu...cachorro desgraçado!” Enquanto falava o dr. Ângelo a custo se continha. Os demais permaneceram silenciosos, mas a fazia-se evidente a irritação estampada nas faces trêmulas. “Se não pode nos pagar, se estava desempregado, por que merda, então, trouxe para nossa maternidade a sua mulher? Por que não procurou uma parteira qualquer ou o SUS? E ainda por cima veio com uma porra de uma mentira!” Acabrunhado e também assoberbado pelo sentimento de vergonha, o homem bêbado não replicou, a voz estava sob forte tensão e não havia mesmo o que dizer.
Seus credores também se calaram. De que adiantaria gritar contra aquele homem e ameaçá-lo de prisão? Certamente isso não levaria a nenhuma solução pragmática, todos terminariam perdedores no final das contas. Ei-lo a mercê, desmoralizado, arrasado, não passando de um desprezível trapo humano. E agora, o que fazer realmente naquela situação bizarra? Um jeito haveria de ter. O miserável que vendesse até mesmo um filho se fosse preciso, qualquer coisa enfim, para eles não importava o que fosse. Queriam receber seus honorários, não podiam ficar no prejuízo. Mas o homem bêbado não possuía mais nada, nem mesmo a honra, nem ao menos os sonhos. E agora?
Dr. Ângelo, o mais enraivecido e exaltado dos três à frente dele, andava novamente pela sala agora em silêncio, de vez em quando esmurrando alguém invisível que tinha o rosto do bêbado. Os pensamentos se perdiam no espaço como fumaça, voláteis e etéreos.
- “Já sei! Já sei! Tenho uma grande e importante idéia!”
O grito alarmado do dr. Ângelo despertou-os do torpor e imediatamente todos se voltaram para ele, que sorria malicioso. Imperceptivelmente o homem bêbado sentiu um calafrio correr-lhe a espinha. “Há uma maneira desse cara nos pagar, sim como não!” Tornou a falar o médico. “E qual é a maneira, dr?”, indagou a dra. Gertrudes, impregnada de avidez. “Um rim! Ele tem dois, tiramos um e vendemos para algum ricaço necessitado de transplante.”
O homem bêbado levantou a cabeça, pálido, apavorado.
- “Yes, yes!, - bufou a diretora -, Ângelo sua idéia é realmente genial.
Um soluço túrgido sacudiu o homem bêbado ao ser agarrado pelos médicos, um deles empurrando no nariz do pobre coitado um chumaço de algodão empapado de éter e clorofórmio
Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 05/08/2008
Reeditado em 05/08/2008
Código do texto: T1114699
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