Foi um escarcéu inominado na alta cúpula da maternidade. Avisando-o sobre a descoberta, intimando-o a retirar a mulher parida do apartamento no mesmo dia da revelação, logo souberam-no um reles e insignificante desempregado da Nova Era Brasileira. O ódio explodiu, colocaram a pobre mulher em recuperação no galpão dos indigentes e chamaram-no para uma reunião onde se definiria o pagamento de duas diárias, além das outras despesas óbvias e absurdas.
Paciência! Ele os olharia cara a cara e colocaria os pingos necessários nos “is”. Falaria de sua penúria, relataria a miséria de estar desempregado nesta terra rica onde só vale quem tem e dos filhos passando fome. Gritaria se fosse preciso. A cachaça ardendo no seu corpo ajudaria. Verdade que seria uma barra quase insuportável, um martírio acima de suas forças naturais. Por isso, procurava na bebida asquerosa o ânimo indispensável que lhe faltava naquele momento difícil. Buscava injetar-se a coragem artificial que, sóbrio, não lhe chegaria como no internamento da esposa. Agora a coisa era diferente, não tinha o mesmo ânimo e nem havia mesmo como enganar duas vezes aquele povo duro.
O rosto sombrio franziu-se em nova careta. Ele contraiu a palma da mão e, surpreendentemente para o gorducho caladão do boteco, esmurrou a janela-balcão e derrubou a garrafa de cachaça – quase a quebrou -, espalhando o líquido nojento e corrosivo em seus pés e pelo chão. O gordo, as bochechas vermelhas e flácidas como as de um buldogue, lançou-lhe um olhar carrancudo e expressivo de quem não gostou nadinha daquela atitude violenta em seu estabelecimento, fazendo menção de alarmar seu protesto. Não foi preciso, no entanto, já o bêbado se agachava e repunha intacta a garrafa no lugar, metendo depois a mão no bolso e retirando-a com uma cédula dilacerada e algumas moedas, pagando inteiro o preço do líquido bebido e derramado. Eram seus últimos reais de tão pouco valor.
“Vamos acabar logo com isso!” – pensou ele, saindo em seguida. Não havia mais nada a fazer, o horizonte se mostrava sombrio e carregado de melancolia. Enfrentaria a cúpula da maternidade. Que jeito? Saiu meio grogue, as pernas bamboleando e jogando-o para frente e para trás. Oscilava igual a um pêndulo.
A maternidade não era muito distante, embora ele quase não conseguisse enxergar mais de dois metros à sua frente. Conduzia-o apenas a firme decisão de por logo um fim definitivo ao tormento em seu íntimo e a certeza de levar a mulher e o filho para casa, desse no que desse. A vida precisava continuar apesar do desemprego, da falta de dinheiro e da fome.
Aos tropeços, por muito pouco não caindo pelo caminho, finalmente ele chegou à maternidade. O transpirar de seu corpo e a respiração apressada, esbaforida, encheram e enervaram a recepção. O ar adensou-se de exalação alcoólica. E quando o homem bêbado falou: “vim buscar minha mulher e meu filho”, uma senhora refinada e bem vestida ao lado discretamente pôs a mão sobre o nariz, enojada. “Seu nome, por favor!” “Joaquim José da Silva Xavier”, ele respondeu, a voz engrolada. “O Tiradentes?” Indagou a jovem recepcionista sem conter o riso irônico. “Não, o bêbado, o desempregado bêbado!” Ela ensaiou um débil sorriso desprovido de alegria, constrangida, em seguida voltando à seriedade profissional. “Consta débito na ficha do senhor.” Ele a encarou como se visse uma aberração e se contorceu batendo as mãos nos bolsos da calça e da camisa e afirmou, num misto de raiva e impotência: “Não tenho dinheiro, tô desempregado, sou vítima da sanha brutal do lucro, fui despedido por contenção de despesas, tudo culpa do seu presidente!”


...continua
Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 05/08/2008
Reeditado em 05/08/2008
Código do texto: T1114695
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.