HUMANIDADE À DERIVA - CLTS 24
A Esfera era o último foco de vida conhecido na Terra. Seus ocupantes, por milênios sonhavam encontrar vestígios de uma civilização há muito esquecida. Os relatórios armazenados naqueles antigos computadores estavam incompletos, muitos detalhes foram corrompidos, outros não tão claros tornaram-se lendas. Sabia-se no entanto que um gigantesco meteoro estava em rota de colisão com a lua, este poderia ser o fim de toda a humanidade e daquilo criado por ela.
Naquela época cessaram-se as lutas, terminaram as divergências, todos se uniram em busca da redenção.
Dentre as várias iniciativas para salvar parte da humanidade, a Esfera possuía um projeto ambicioso.
Uma enorme bola de metal altamente resistente, possuindo giroscópios e estabilizadores acoplados à amortecedores de inércia, que poderia ser arremessada de um lado a outro durante o dilúvio causado tanto pelo gelo vindo do corpo espacial como daquele oriundo do derretimento das calotas polares, pois o planeta deslocado de sua orbita já não teria uma perfeita rotação, e mesmo assim nada em seu interior seria afetado, tudo se manteria na horizontal.
Foram cinquenta e três anos de preparos e finalmente a arca salvadora abrigava quase vinte mil pessoas em hibernação.
Por séculos a Esfera vagou sem rumo, à deriva naquele oceano sem fim. Esgotado o primeiro reator nuclear, ele foi ejetado, depois o segundo e finalmente o terceiro. Sensores, monitoravam a parte externa aguardando o momento certo para um nova humanidade eclodir.
Agora a eletrólise obtinha hidrogênio, combustível essencial para manter todos os aparelhos funcionais.
Seguindo por um daqueles corredores monocromáticos, a tripulante permanecia atenta, atrás de si, passos abafados denunciavam a presença de alguém que não queria ser descoberto.
Ela estava farta, sabia qual seu papel, porém cansou de ser observada, mensurada a cada ato. Todos a sua volta pareciam querer mais de suas ações, nunca era suficiente, cansou dos olhares inquisidores, cansou de tanta reprovação. Sentia-se uma peça descartável naquela estranha realidade, mais uma engrenagem como tantas outras dispensáveis.
No fim da caminhada, um painel piscava em azul. Digitou alguns números na tela. Uma luz vermelha se acendeu, instantes depois se tornou verde.
A brisa leve trazia o cheiro do mar renovando o hálito amargo da grande bolha de metal.
Quem nasce em cativeiro, desconhece o sabor da liberdade. Era em outro mundo que desejava estar. Em seu peito o coração bateu acelerado, seu corpo tornou-se leve, flutuou, os cabelos soltos acariciavam-lhe a face, estava livre. Finalmente extinguia-se as expectativas. Veio a escuridão.
Um bip sou na sala de comando.
- Ativo oito da engenharia inoperante.
A responsável pelo setor de operações avisava da morte de uma tripulante.
,
- Reabilitar ativo oito. Dados do sinistro em minha tela. Esta foi a resposta da Capitã.
Naquela ponte de comando, os olhares pareciam vagos, se uma das operadoras observasse com atenção, veria um pequeno tremor na mão esquerda da comandante, algo leve que cessou após alguns movimentos girando o punho.
Uma estranha sensação tomou conta da Capitã. Naquela sala sentia-se num labirinto de espelhos, cada pessoa ali presente possuía a mesma expressão, o mesmo rosto apático desprovido de sonhos. Ela se via em cada uma delas, todas sem expectativas.
Ao recebe os dados, após um suspiro, se dirigiu à escotilha onde houve o acidente. Caminhou com pensamentos soltos até se por diante do umbral da porta. Abriu. Como sempre, céu e mar se confundiam. Olhou para baixo.
- Odeio tanta água.
- Morreu com o choque.
Uma voz a surpreendeu.
Mais uma de tantas cópias se colocou a seu lado.
Como todas as ocupantes da Esfera, a Doutora era mais clone, um ativo sem nome, somente um título.
Quando os sensores externos atestaram a possibilidade de vida no planeta já era tarde. O mal funcionamento roubou a promessa do repovoamento da Terra, para evitar contaminações, as câmaras criogenicas contendo cadáveres foram ejetadas. Por capricho, um único indivíduo despertou, levou anos na solidão antes de entender seu propósito.
No silêncio daquela maravilhosa obra de engenharia descobriu a possibilidade da clonagem. O aparelho de cultivo de células era autônomo e estava apto a funcionar.
O primeiro clone foi criado. Sua programação de engrama aleatório determinou suas aptidões para o setor de transporte naval.
Para cada uma das funções exercidas dentro da Esfera e depois para a recolonização, estava armazenado no computador central uma sub-rotina que implantaria todos os conhecimentos específicos a cada uma das cópias.
- Sabia que lhe encontraria aqui. Continuou a recém chegada.
- Não consigo entender a razão para se tirar uma vida. Temos tão pouco tempo e mesmo assim está se tornando normal abster-se de sua própria existência. A comandante refletia enquanto além de seu querer os dedos da mão tremiam involuntários.
- Pensou no que lhe falei em nossa última consulta?
- Doutora, não sei o que pensar. Fantasia? Delírio? Possibilidades? Se o que me contou puder se realizar, viveríamos uma utopia. Nossos ativos sendo gerados de forma natural. Crianças já não são mencionadas desde que se tornou desnecessário a ativação de preceptores. Estender o tempo de vida de um ativo. Quero acreditar, mas é tão difícil.
Nos códigos neurais daquela que seria designada Capitã da Esfera pesava um grande senso de responsabilidade, porém ali também continha o desejo de prosperar, se adaptar, evoluir. Enquanto que a Doutora não acalentava apenas seus anseios. Outras antes dela pesquisaram, propuseram, formularam e analisaram teorias e tendo acesso a conhecimentos inatos sobre todos os processos de clonagem e implantação de memória, no fim tornou-se fácil transmitir a sua sucessora tudo aquilo que havia sido descoberto.
- Estamos bem próximas de um colapso. Por milênios nossos ativos zelaram pela vida e pela Esfera, mas nos últimos séculos desvios são relatados. Erros de protocolos geram acidentes, ativos se deterioram antes da maturidade, a expectativa funcional tem caído a quase 78%. A demência surge bem mais cedo.
A demência não era algo fácil de se explicar, não era depressão, não era raiva. Acontecia quando menos se esperava, uma sensação de falta, de saudade de algo que nunca se teve, era um quebrar sem doer, não era solidão, mas existia uma ausência.
A comandante saiu em silêncio deixando a Doutora na borda do precipício. Lá embaixo, o oceano límpido parecia chamar por seu nome.
Ela sorriu. Sabia que não poderia ignorar por muito tempo. Este apenas não era o momento.
Alguns dias de estabilidade amenizaram os ânimos. Caminhar pelos corredores de acesso era um tanto monótono. Um branco opressivo coloria toda a instalação. Aqui e ali, luzes piscantes denunciavam uma escotilha.
Na sala do giroscópio, a Capitã sabia o que verificar, sua lista poderia ser obsoleta mas fazia parte do protocolo. Não seria ela a criar novas rotinas.
O som de metal bem lubrificado parecia uma música triste. A cada passo, uma nova luz se acendia, enfim uma parede translúcida guardava engrenagens bem articuladas. Algumas giravam loucas, outras amorteciam a velocidade, todo aquele emaranhado de mecanismos mantinham a bola de metal sempre bem nivelada.
Ao se fechar, o barulho da escotilha distraiu a Capitã por alguns segundos, nada preocupante, companhia não lhe faria mal, era indiferente. Continuou sua checagem até que todas as luzes se apagaram.
Um incidente como este não era comum, todo aquele espaço se tornou escuro, apenas os giroscópios denunciavam movimento. Intrigada, se dirigiu à entrada guiando-se pela prática de tanto realizar esta tarefa.
Antes que alcançasse a porta, foi golpeada por uma barra de metal. No chão sofreu diversas agressões, as dores das costelas quebrando sufocaram seus gritos, duas ou mais pessoas a surravam.
Foram intermináveis momentos abandonada naquele metal frio, a cada tentativa de se reerguer retornava inerte em meio ao sangue e vômito, finalmente foi encontrada.
Na manhã seguinte, num leito da enfermaria, a Doutora segurava a mão da comandante que despertava com o rosto inchado e alguns dentes faltando.
- Como você se sente? Parece que alguém não gosta de você.
A comandante tentou esboçar um sorriso, mas isso apenas lhe causou mais dor.
- Você pensou em tudo que lhe contei. Está piorando, agora está agressão.
- Você é a doutora, acha mesmo que temos chances? Podemos nos recuperar?
Era difícil articular estas poucas palavras.
- Apenas se nos apresarmos. A degeneração dos genes provocam a demência, a loucura e agora a violência. Os ativos desistem de viver, se matam, cometem erros que colocam em risco a própria sobrevivência na Esfera.
A Doutora pausou a conversa esperando uma reação da Capitã, está apenas suspirou.
- Acredito que um dia houve grandes porções de terra, havia espaços sem água, outros seres habitavam o planeta. Temos muitas informações que comprovam isto. Os dados são incompletos, mas sei que possamos encontrar vestígios das antigas civilizações. Não é mito. Basta termos a sorte de encontrar um pouco de DNA destes antigos povos. Estaremos salvos.
A Capitã virou-se para o lado e fingiu estar com sono. A Doutora saiu sem conseguir esconder a decepção, acreditava que agora teria aprovação para a tão sonhada expedição.
Um mês depois, mesmo sem estar totalmente recuperada, a comandante liderava uma esquadra com doze submarinos em busca das ruínas dos povos antigos, dos vestígios de uma humanidade perdida.
Ao ver as embarcações partindo, na plataforma de lançamento, a Doutora deixava escapar um sorriso de satisfação. Bastou um pequeno empurrão e algumas palavras na hora certa que tudo se encaminhou.
As mortes foram apenas danos colaterais.
Mundo pós-apocalíptico