TOMANDO UMA GELADA COM O DEMÔNIO.🍺👹

Verão carioca. A pedra bateu na janela do sobrado da rua dos Tibiriçás. Os três lençóis amarrados saltaram da janela mas não alcançavam o chão. Alexandre não acendeu a luz do quarto, pra não despertar os pais. O corpanzil do rapaz passou pela janela e desceu com cuidado. Os pés no vazio. O moço engoliu em seco e olhou pra baixo. O jeito era se soltar e cair. Sorte que a grama estava alta mas o ombro doeu com a pequena queda. Ele puxou os lençóis e os escondeu debaixo dos arbustos sob os pés de manacás. Os pais dormiam o sono dos justos. Ele tinha amarrado os cães dentro da garagem. Pulou o muro e encontrou os três amigos na calçada. -"Caraca, Pereba. A gente combinou às onze." Alexandre odiava o apelido de infância mas não discutiu com Douglas. -"Meus pais ficaram assistindo La Casa de Papel, até tarde, na Netflix. Velhos dormem cedo mas agora estão viciados em séries. Vamos lá, para o fervo." Wilsinho entrou no Opala, ano setenta e nove, reformado e rebaixado. Alexandre e Juliano sentaram no banco traseiro. Douglas foi na frente, já ligando o rádio. -"Pra Manhatans Nightclub, o point do momento, onde está a agitação e as gatas?" Gritou Wilsinho. -"Yes, my friend. Recebi a mesada dos coroas e vamos beber todas." Juliano exibiu as notas de dinheiro na carteira e a identidade falsa. O carro ganhou velocidade ao mesmo tempo que Douglas colocava um CD dos Racionais. Um posto de gasolina, antes da rodovia. Uma parada pra irem ao banheiro e abastecer o carro de bebidas. -"Essas lojas de conveniência, em postos de combustíveis, são uma facada no estômago. Cerva quatro paus, três pilas por um drops!" Reclamou Alexandre aos amigos. Douglas jogou uma latinha pra ele. -"Toma uma gelada, reclamão. Não tomou nenhuma ainda." Alexandre abriu a cerveja. -"Valeu. Não quero misturar bebidas. Estou louco de saudades da batida de morango do Manhatans." Os outros riram. -"Saudades da batida ou da moça que faz os drinques? Tá apaixonado o nosso amigo Pereba. Viu a moça no mês passado e não a tirou da cachola." Uma Mitsubishi amarela entrou veloz no posto, parando ao lado do carro deles. Dois brutamontes desceram, tirando os óculos escuros. Os cabelos platinados. Os cordões de ouro reluzindo. O funk no maior volume. Uma loira e uma morena também desceram, em trajes minúsculos. A loira seguiu um dos rapazes e foi empurrada. -"Fica no carro, Britney." Wilsinho quis partir pra cima do rapaz mas Alexandre e Douglas o seguraram. -"Opala! Carro de pedreiro, querem vender?" Wilsinho riu. O rapaz jogou o cigarro e pisou nele com a bota. Eles entraram na conveniência. As moças acenderam cigarros. A loira não tirava os olhos de Wilsinho. -"Fica na sua, maluco. A morena está com hematoma. Esses dois são filhinhos de papai, certamente." Cochichou Douglas a Wilsinho, flertando com a loira. -"Estão com eles pelo dinheiro, pelo carro." Disse Wilsinho aos amigos. Os dois rapazes saíram, carregando três garrafas de whisky e latas de cerveja. A Mitsubishi saiu a toda velocidade, cantando pneus. -"Dois bombadões feios, montados na grana e com gatas que gostam de apanhar." Disse Juliano, resignado. -"Nós, os quatro cuecas, pobres estudantes num Opala de pedreiro. Pode falar, Juliano." Todos riram de Wilsinho. A rodovia interestadual. Finalmente, a famosa lanchonete e casa de shows. O estacionamento pago. Alexandre bateu a porta do carro. -"Não é porta de geladeira, Alexandre. Se for mais delicado eu agradeço." Wilsinho pulou nas costas do amigo. Eles passaram pelas mesas na calçada. A música eletrônica bombando. O vai e vem de garçons equilibrando bandejas com garrafas e pratos. Uma área interna ampla, com destaque para o balcão com luzes de neon. Uma banda preparava os instrumentos num pequeno palco. A pista de dança quase toda tomada pelos frequentadores. O mezanino. Uma área no primeiro andar, com espaço vip e mesas com estofado de veludo verde, de onde se via parte da rodovia e o aeroporto ao longe. Douglas puxou Juliano, antes que esse tomasse posse de uma mesa. -"Tá louco? Mesa paga couvert, vamos circular." Eles encostaram no balcão. Alexandre olhava para os lados. -"Ela não veio trabalhar, maluco. Só tem homem atrás do balcão." Observou Douglas, zombando de Alexandre. -"Salta uma gelada com porção de fritas. Pra começar." Pediu Wilsinho ao barman, jogando a comanda no balcão de vidro. Após duas batidas, Alexandre criou coragem pra encarar a pista de dança. Douglas e Wilsinho riam. -"Aquilo é o Moon Walk, ele acha que está abafando?" Juliano interrompeu Douglas. -"Adivinha quem está lá fora, nas mesas da calçada?" Wilsinho levantou as mãos. -"Não sei, não sou mãe Dinah pra adivinhar. O Stallone, o papa Francisco?" Wilsinho não aguentou e quase chorou de tanto rir. -"A sua avó, veio te buscar?!" Juliano estava impaciente e gritou, devido ao som alto. -"A galera do Mitsubishi, do posto. Deu pra ver uma arma na cintura de um deles." Wilsinho arregalou os olhos e pediu outra cerveja. Os três se juntaram a Alexandre na pista de dança. A casa encheu. Tempo depois, Alexandre e Juliano foram ao banheiro. Douglas subiu ao mezanino. Ele parou e colocou a mão na boca, incrédulo. Debaixo da escada, num lugar meio escuro, na penumbra onde casais se pegavam aos beijos calientes e voluptuosos, os chamados beijos desentupidores de pia, Wilsinho estava colado a loira que eles viram no posto. Ela segurava uma garrafa quase vazia de whisky. Wilsinho tomou um tapa na nuca. -"Wilsinho!? Você é maluco, parafuso solto. Essa loira tá com os caras do Mitsubishi. Vai azedar a boca da égua, vão lhe matar." Douglas se desesperou, quase arrancando os cabelos. -"Vai embora, fela da mãe. Me deixa." Douglas percebeu que Wilsinho estava alterado, falando mole. -"Você bebeu com ela? Vou chamar um táxi e vou embora. Aqueles caras vão te matar." A loira pendurou no pescoço de Wilsinho. -"Amor. O Naldo é meu noivo mas gostei de você." A moça chamou o Hugo e vomitou em Wilsinho. -"Mas que m..." Douglas não sabia se ria ou chorava. -"Minha camisa da Bad Boy, que cheiro ruim." Wilsinho correu para os sanitários. A moça virou os olhos vermelhos e desmaiou. Douglas a segurou. Um casal ao lado chamou os garçons. Um segurança veio com eles. -"Ela está com o noivo, na calçada. Deve ter misturado bebidas." O segurança riu. -"Bebidas e talco. Esse cheiro é de pó, meu chapa." Passando das duas da madruga, Alexandre conseguiu uma mesa vazia. -"Cansei de dançar e mostrar meu talento. Pedi duas garrafas pra gente." Wilsinho veio do banheiro, irritado. -"Mano, você tá fedendo. Veio no carro parecendo filho de barbeiro, passou meio vidro de perfume Malbec mas agora tá osso." Douglas explicou. -"A loira do Mitsubishi vomitou nele, depois dos beijos na escada do mezanino. Vamos embora antes que a coisa fique séria." Alexandre e Juliano se olharam, preocupados. -"A moça está bem. Está lá fora, na calçada com os amigos." Disse um dos garçons a Wilsinho. Eles ouviram um barulho de mesas e cadeiras caindo. Uma garrafa espatifou na janela da lanchonete. -"Tem uma moça louca lá fora. Chamem a polícia." Gritava um dos donos do local ao segurança. -"Wilson?????" O grito ecoou, deixando Wilsinho desesperado. -"Mano. Ela tá te chamando. Vai lá." Disse Alexandre, rindo. -"Cara. Não tem graça." Um garçom entrou, correndo. -"A loira está louca. Os dois caras com ela estão bêbados e não a seguraram. Ela pegou a arma de um deles." Os donos do local sem saber o que fazer. O segurança molhou as calças e desmaiou de medo. Um tiro. As pessoas corriam, deixando a lanchonete. Os carros saindo do estacionamento. A loira entrou, com a arma apontada pra cima. -"Wilson....me paga uma gelada!" Gritou a moça, com voz grutural e forte. Três garçons tentaram segurar a moça magrela mas foram atirados longe por ela, com pontapés. Os donos da lanchonete a seguraram por trás mas ela tinha a força de dez lutadores de MMA. -"Saiam da minha frente, porcos imbecis. Wilson, cadê você?" Os quatro amigos na mesa, aterrorizados. A voz dela era grossa, alta e vigorosa. -"É o demônio. Ela tá possuída." Gaguejou Alexandre. Juliano de cabelo em pé, arrepiado. Douglas se benzia. Wilsinho a encarou. -"Fernanda, Lúcia, é. Calma, moça. Meu Deus, todas as santas e santos de Deus. Tô lascado." A loira o encarou com os olhos virados. -"Você vem comigo. Uma gelada antes de te matar." A loira o pegou como um poodle e o jogou nos ombros. O noivo dela foi reanimado pela cozinheira da casa, uma antiga enfermeira. -"Britney?" Ela se virou. -"Meu nome é Legião, idiota." Ela atirou e atingiu o noivo, de raspão na perna. Britney subiu os dezoito degraus com Wilsinho nos ombros, sem esforço nenhum. Ela jogou o rapaz na cadeira e puxou uma garrafa de cerveja. Um dos donos do lugar ligou para um pai de santo, que morava ali perto. Outras pessoas ligaram para o SAMU, outras para a polícia. Britney encheu os copos. Wilsinho brindou com ela. -"A nós. Ao amor." Ele gaguejou e tomou a cerveja, tremendo o copo. Britney o puxou e o beijou, mordendo a língua do rapaz com força. -"Meu, você me mordeu." Ela tomou a cerveja num gole só. Britney deu uma gargalhada fantasmagórica, como um Orc de O Senhor dos Anéis. Wilsinho molhou as calças. -"Mais cerveja. Vamos tomar cerveja." Britney encheu os copos. Wilsinho pegou o copo dele. O pai de santo chegou. -"Saia desse corpo que não te pertence, espírito ruim." Britney encarou o homem ao pé da escada. Ela riu e apontou a arma pra ele. Sem balas, ela jogou o revólver no homem de branco. A polícia chegou, junto da ambulância. -"Nosso amigo está com ela. Tem a força de muitos homens, ela o pegou como um boneco." Explicou Douglas aos policiais. O enfermeiro e o motorista da ambulância a postos, com algemas e camisa de força. -"Vamos ter que subir e pegá-la. Não tem jeito." Ordenou um policial. Os garçons ajoelhados, rezando. O enfermeiro pegou Douglas e Alexandre pelas mãos. Vamos subir todos ao mezanino e pegá-la com força. Você também vai. Quanto mais homens, melhor." Ordenou a Juliano, mais perdido que cego em tiroteio. Os quatro policiais foram a frente. O enfermeiro, o motorista e os três amigos mais atrás. Os três morrendo de medo. Britney percebeu a movimentação e quebrou uma garrafa na cadeira. -"Fora daqui, humanos. Vou matar esse traste e levá-lo para o inferno comigo. U adis inferos amentis." Wilsinho se levantou e grudou -se a parede preta do local. -"Misericórdia. Estudei latim no seminário menor. Ela disse que vai me levar pro inferno. Não quero morrer." Ele chorou. Britney gritou. -"Vou levar esse traste para o inferno comigo." Um dos policiais se arrepiou todo com o vozeirão da moça. Eles avançaram sobre a loira. Ela jogou a garrafa quebrada num dos policiais. Por sorte, errou o alvo . O enfermeiro tentava vestir a camisa de força na moça possuída pelo gramunhão, o coisa ruim, enquanto os policiais a seguravam. . O pai de santo subiu e falava palavras de ordem pra expulsar o espírito da moça mas surtia efeito contrário, a moça ficava mais nervosa com sal grosso e água benta sobre ela. -"Antenor? Você me usou tanto e agora está contra mim?" O pai de santo se arrepiou pois aquela moça o chamou pelo nome e ele não a conhecia. -"Meu Deus. O demônio tá no corpo dela ." Um dos policiais levou um soco de Britney. A moça se soltou e pegou Wilsinho pelo pescoço. O rapaz tentava se desvencilhar, em vão. Estava ficando roxo, sem ar. Alexandre, Douglas e Juliano, junto do enfermeiro, ajudaram os policiais. Wilsinho estava livre, com o pescoço doendo. -"Ela tá com uma força descomunal. Como pode?" Gritou Juliano, levando um pontapé da moça, ao grudar em suas pernas. Juliano se recuperou e agarrou uma das pernas dela. Douglas pegou a outra. O enfermeiro investiu e pegou o seu tronco, com os policiais. Alexandre pegou um dos braços. Vacilou e levou uma mordida na mão. Ele gritou ao ver o sangue escorrendo. A calça da moça desceu, quando eles a levantaram. Um dos policiais levou um jato de xixi no rosto. Britney rosnava e babava, proferindo palavrões e condenações em latim e espanhol. Um dos policiais sacou a arma de choque e atingiu as costas da moça agitada. Ela se contorceu. Outro choque e Britney desmaiou enfim, com eles descendo as escadas. Colocada na maca, ela foi algemada e imobilizada, amarrada com lençóis, no tronco e nos membros. Os curiosos em volta. A maca foi colocada na ambulância. O noivo e seu amigo estavam desesperados. -"Britney? O que aconteceu? Tadinha, perdeu o pai há um mês e se afundou no álcool." Gritava o noivo. -"Era o demônio. O capeta entrou nela, aproveitando o baixo fluxo de energia e a depressão da moça." Disse o pai de santo. -"Balela. Ela misturou drogas e álcool. Uma combinação fatal." Respondeu o enfermeiro. A ambulância saiu, seguida pelas duas viaturas e a Mitsubishi, em direção da rodovia. -"Velho. Não sei o que era mas essa moça parecia o Rambo ou o Conor McGregor turbinado. Olha, as marcas dos dentes da bicha." Disse Alexandre, sentado na calçada com os amigos. Alexandre estava ofegante, sem palavras pra descrever o fato. Juliano estava visivelmente abalado. Os donos do local vieram até eles. -"Obrigado pela ajuda, rapazes. Isso sempre acontece aqui, misturam bebidas e se dão mal. O problema era a arma, poderia ter acontecido uma tragédia. Se quiserem a saideira, é por conta da casa." Eles se olharam. -"Saideira? Deixa quieto, maluco. Vamos vazar desse lugar, esquecer essa noite. Tomei uma gelada com o demo, tô com as marcas da mão dela no pescoço. Cê é louco." Wilsinho tirou as chaves do carro do bolso e caminhou rápido até o estacionamento. Os amigos o seguiram e ficaram em silêncio, no carro. -"Sem música de Racionais, essa aventura foi irracional. Parecia até aqueles contos de terror que o meu tio Marcos escreve no Recanto das Letras." Disse Douglas, no banco do passageiro. Wilsinho deixou Juliano e Douglas nas suas respectivas casas. Levou Alexandre depois. -"Você tem que descer e fazer escada pra eu pular o muro." Wilsinho desceu. Alexandre pisou nas mãos do amigo e alcançou o alto do muro. -"Valeu, mano. Até amanhã na facul." Wilsinho entrou no carro e se foi. Alexandre tomou um banho rápido, com a casa na penumbra e no silêncio total. Demorou pra dormir, com as vozes de Britney na cabeça. Começou a rezar o terço e adormeceu. Os quatro amigos nunca mais reencontraram aquela moça, como também nunca mais retornaram naquele local. 🧑👨🏻👦🏿👨🏼🍺🍻👹😈FIM.

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 11/06/2023
Reeditado em 12/06/2023
Código do texto: T7811172
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