O PORÃO DO TERROR.

-"Minha terra natal não existe mais, logo, sou americano!" Foram as palavras do velho e bom Dimitri, ao microfone no palco do anfiteatro de Robson Park, em Amberville, Dakota do Norte. O prefeito Carl York se levantou. Ginger Thomas Ferdinand, a líder de torcida dos Yankees, o time de basquete local, campeão pela primeira vez das olimpíadas universitárias, levou ao prefeito a bandeja prateada com a medalha de honra ao mérito do condado. O teatro lotado pela população da cidade. Dimitri Zmudazorski tinha noventa e seis anos, quase a mesma idade da cidade. O prefeito colocou a medalha no pescoço do homenageado, emocionado. Aplausos efusivos. Todos de pé. Homens e crianças chorando. Dimitri era um herói. Um homem de fé, respeitado, zeloso pela comunidade. Foi dele a sexta casa construída no condado, na rua principal. Dimitri, um jovem musculoso, de um metro e noventa e barba longa, não tinha preguiça muito menos medo. Uma criança amedrontada, com a família numerosa que veio de navio da Iuguslávia, país dividido atualmente, onde se encontram a Sérvia, Montenegro, Croácia, Macedônia e Bósnia. Uma região bela, de conflitos e de gente branca de olhos azuis. Era adolescente quando seu pai morreu. Jurou a si mesmo que jamais teria medo de nada. Dimitri, um jovem ambicioso, junto de Eric LaGuardia, Peter Smith, Sam o barbeiro e Linus Friedrich fundaram o condado. Eles construíram a igreja, a escola, a creche, o posto médico e as primeiras casas. Abriram estradas e ergueram pontes. As hortaliças e frutas cresciam vistosas na terra roxa do condado. Com as produções vieram as feiras e com elas, os bancos, armazéns, lojas e moradores de outras cidades vizinhas. Dimitri e Sam serviram o exército americano e tinham várias medalhas de honra. Sam foi o primeiro prefeito. Linus foi prefeito por quatro mandatos seguidos. Dimitri era o único vivo dos fundadores. Virou farmacêutico, após vender a fazenda de laranjas. Fazia serviço voluntário de zelador da escola municipal. Foi o fundador e jogador das equipes de beisebol e basquete da cidade. Depois, tornou-se treinador de beisebol. Estava sempre sentado no canto esquerdo, do primeiro banco da igreja de São Clement, com sua esposa Ana Claire. -"Um cidadão exemplar, não há o que dizer sobre ele a não ser dar-lhe a medalha máxima da câmara de vereadores do condado e aplaudir de pé, agradecendo todas as benesses em prol de nossa cidade e região." Disse o prefeito Tim Herald, visivelmente emocionado. Dimitri olhou pra esposa e sorriu. Na cidade de oitenta mil habitantes, Dimitri era nome de praça e avenida. Emprestava seu nome ao primeiro condomínio instalado ali, o Dimitri Park Residencial, com trezentos apartamentos luxuosos, com espaço pra piscina, academia de ginástica, sauna, parque de diversões e quadra poliesportiva. -"Não sei se chego aos cem anos." O público veio abaixo quando ele falou ao microfone. -"Bem. Não enxergo bem devido ao tempo mas vi o progresso chegar a nossa cidade. Os primeiros carros, o asfalto e tudo mais. A internet, os aparelhos domésticos e isso me alegra. Sou grato. Grato a Deus, a cada de um vocês aqui. Amem suas famílias e a defendam com todas as suas forças." Ele foi ovacionado. Aplaudido de pé, Dimitri se apoiou no andador. Um sobrinho, Gustav, o ajudou. O terno azul marinho, a medalha no peito. Dimitri desceu do palco, enxugando as lágrimas com um lenço amarrotado. No telão do teatro, o público assistiu as mensagens a Dimitri. Famílias agradecidas. Os trabalhos de Dimitri pela cidade e sua rica história. Mensagens de senadores e deputados que conheciam a história daquele herói. A imagem de Denzel Washington e Brendan Fraser no telão, falando de Dimitri e sua história de vida exemplar. O prefeito procurou os atores e mostrou a eles a história de Dimitri. Os atores gravaram os relatos, gratuitamente. Um corredor de gente e fotógrafos. Dimitri seria capa de jornais e revistas. O prefeito tinha organizado um almoço festivo em sua casa. Trezentos convidados, a maioria políticos e familiares. Dimitri cortou um bolo, após o churrasco. Os balões dourados. Música ao vivo. A noite, a triste notícia. Ana Claire tinha sofrido um AVC. A mulher de saúde frágil não resistiu, horas depois de ser internada no hospital Esperance, na ala que levava seu nome. A cidade estava de luto. Dimitri perdia sua companheira de cinquenta e três anos de união. Dimitri tinha sido casado anteriormente com Dinah Florence, por dez anos, antes de conhecer Ana Claire. Dinah desapareceu aos vinte e seis anos, após um culto religioso ao ar livre. A cidade se mobilizou nas buscas. Mergulhadores percorreram cada centímetro do lago Sul. A polícia mobilizou os habitantes e a floresta foi vasculhada minuciosamente. Dimitri sofreu muito e a população o confortou. Dinah foi considerada morta. Dimitri se desesperou e saiu correndo pelas ruas, com o atestado de óbito da esposa. Tranquilizado a base de fortes remédios, ele permaneceu em tratamento por três dias no hospital psiquiátrico da vizinha cidade de Jackson. Ana Claire surgiu em sua vida como um bálsamo. O casal não teve filhos. Dimitri não tinha filhos e esse fato explicava sua dedicação às crianças da cidade. Ele amava brincar com a molecada da vizinhança. Todos o admiravam por isso. Gustav chamou o irmão George pra cuidarem de Dimitri, após o funeral de Ana Claire. -"Vamos contratar um cuidador vinte e quatro horas. O tio também precisará de uma enfermeira." Gustav foi interrompido pelo prefeito. -"Concordo, rapazes. A prefeitura cederá um cuidador e uma enfermeira ao velho e bom Dimitri. É o mínimo que podemos fazer ao nosso herói." Gustav e George concordaram. Dimitri entrou em sua casa. Seu motorista ficou do lado de fora, como sempre, desde que fora contratado há sete anos, quando o velho não pode mais dirigir. Dimitri não tinha sequer empregadas, não gostava. As lágrimas caíram ao ver a casa vazia. A mobília antiga que Ana Claire tinha comprado. Os azulejos. O piso de madeira original. As cortinas. O lustre. A estante com troféus e medalhas. Uma cabeça de alce empalhada. -"Ana Claire!" Ele gritou. A mão no peito. Ele deixou o corpo cair na poltrona e pegou o celular com mãos trêmulas. -"Socorro." Gustav sentiu o celular vibrando. -"O tio." Ele e a esposa Wanda entraram no carro. A mulher ligou pra emergência, enquanto o veículo ultrapassava o sinal vermelho. -"Ele mal sabe ligar o celular, se ligou é porquê é grave." Gustav quase chorando. Wanda desesperada. O rapaz saiu do carro, não esperando a esposa. A porta entreaberta. O motorista tinha ido abastecer, antes de Dimitri passar mal. A ambulância em frente a casa, atraindo os vizinhos. Dimitri chegou desacordado ao hospital. As rádios e tevês anunciando o fato preocupante. O prefeito foi avisado. George e a esposa Jane foram até a casa do tio. -"Ninguém ousaria entrar aqui e roubar pois o tio é o herói da cidade mas vamos trancar mesmo assim." Disse George. Tinha entrado duas vezes na casa do tio, em toda sua vida cinquentenária. Uma aos dez anos, num aniversário feito no quintal e agora, quando o tio estava no hospital. Parecia que tinha voltado ao passado, naquela casa de móveis tão antigos. -"Se o tio..." Ele começou a chorar. Jane o abraçou. -"Um dia ele terá que partir. É nosso destino. Será triste ptev para nós que o amamos mas é a vida, amor." Gustav ligou do hospital e disse a George que Dimitri ficaria uma semana internado. George e Jane trancaram a casa e foram ao hospital. Eles deram as chaves a Gustav. No dia seguinte, George e Gustav foram até a casa de Dimitri. -"Temos que contratar alguém pra limpar isso, está tudo empoeirado. A casa é grande." Observou George. Jane chegou de carro, logo depois, trazendo produtos de limpeza. -"Não vamos dar conta, Jane." A mulher ignorou George e começou a limpar. -"Vamos aos poucos. Ânimo. O tio sairá do hospital e encontrará a casa limpinha e cheirosa." Gustav encontrou uma vitrola. -"Vamos colocar uma música pra animar. O tio e a tia ouviam ópera o dia todo, no maior volume." Jane se opôs. -"Pode ser mas coloca outro tipo de música. Ópera dá sono." Gustav encontrou um disco dos Beatles, entre a grande maioria de discos de Beethoven, Bach e Pavarotti. Jane enrolou um grande tapete no quarto. Gustav cuidava da cozinha enquanto George dava uma limpada no quintal. Um grito. Os rapazes correram. Jane estava no chão, sentada. -"Esse tapete está muito pesado. Eu o enrolei e arrastei." Ela mostrou um cadeado. -"Tem esse cadeado nessa entrada. Deve ser um porão." George fez sinal de silêncio, com o indicador na boca. -"Pare a música, por favor." Gustav foi até a sala. A agulha da vitrola fora do vinil. George deitou no chão de madeira. -"Muito barulho lá embaixo e não é de ratos. Parece um murmúrio." Jane se arrepiou. -"Temos que abrir o porão do tio." Ela disse, sem muita convicção. George procurou por chaves, em vão. -"Vamos arrebentar o cadeado. É o jeito." Gustav achou uma picareta na garagem. George deu três golpe certeiros e o cadeado rompeu. A portinhola foi aberta. Jane pegou o celular e acendeu a lanterna do aparelho. -"Cuidado. Tem uma escada aqui. Achei um interruptor. Aleluia." A luz acendeu. George, Gustav e Jane estavam em choque, paralisados com a cena horripilante e inimaginável, ainda mais sendo na casa do velho e bom Dimitri. Jane começou a tremer, com a mão tapando a boca. Ela se apoiou em George. Gustav começou a filmar. -"Tenho que filmar isso e mandar pra Wanda. Ela sempre achou meu tio suspeito. Caraca, isso é absurdo." George gaguejou. -"O que...que ou quem são vocês?" Jane notou a semelhança das três moças e dois adolescentes com o esposo. -"Eles são parecidos com vocês dois. Só podem ser parentes de vocês!" George estava assustado. -"Como? O tio não tem filhos. Porquê estão amordaçados e acorrentados?" Jane observou que o porão era grande, com banheiro, sala e uma espécie de cozinha. Não estava tão sujo mas cheirava a mofo. Tinha um sistema de ventilação. A moça mais velha estava raquítica, com olhos fundos. George tirou a mordaça deles. -"Onde estão as chaves das correntes? Chaves, entendem?" Jane sentou-se no chão, triste com aquela cena. Gustav subiu e foi até o quintal, onde tinha sinal de wi-fi. -"Wanda? Olha o vídeo que te mandei e liga pra polícia. Venha pra casa do tio, agora." Gustav caiu com uma coronhada na nuca. Ele foi arrastado e amarrado numa árvore do quintal. George e Jane tentavam tirar respostas daqueles seres humanos trancados no porão. Eles estavam assustados. Os passos na escada. Pensaram que era Gustav mas era o motorista de Dimitri. -"Olá. Encontraram o porão? Mãos ao alto ou atiro." George e Jane obedeceram. O motorista jogou uma corda e ordenou que Jane amarrasse George num pilar. Em seguida, prendeu Jane com correntes. -"Quem são essas pessoas?" O motorista sorriu pra George. -"Essas são Hanna, Glória e Vitória, filhas de seu tio Dimitri com Ana Claire. Os dois rapazotes? Jonny é filho de Hanna enquanto Donald é filho de Glória. Vitória não tem filhos pois sempre aborta quando chega ao segundo mês. É inexplicável. Nem seu tio sabe o motivo." As moças e os adolescentes estavam cabisbaixos e mudos. -"Meu tio sabe disso? Ele sabe desse porão do terror?" O motorista acendeu um cigarro. -"Desculpa, não devia fumar aqui e Dom Dimitri sempre me proibiu. O que dizia? Sim, sabia certamente pois ele construiu isso, o sistema de água e ventilação, os dutos de gás, mobiliou tudo. Hanna aprendeu a ler e escrever com Ana Claire. A tia de vocês parou de descer aqui devido a idade. Ela passava horas com os netos." George gritou por Gustav. -"Ele está lá em cima, amarrado. Dom Dimitri sairá do hospital e decidirá o que fará com vocês." O motorista saiu do porão. Jane percebeu que Hanna chorava. -"Papai bom." Balbuciou Hanna. Acorrentadas, do outro lado da parede do porão, Hanna e suas irmãs falavam baixinho. George estava chocado. -"Papai? Ela disse papai?" O corpo de Gustav rolou pela escada do porão. Gemendo mas bem, Gustav os tranquilizou. -"Estou bem. Tem um porão aqui e esse maluco me atacou!? Porquê amarrou George e Jane? Quem são esses?" O motorista colocou fita adesiva nas bocas de George, Jane e Gustav. Ele subia as escadas quando George gritou. -"Me responde, por favor. Meu tio é o pai dessas moças?" O motorista voltou. -"Precisa responder? Hanna tem trinta anos e nunca saiu daqui. Nasceu aqui, nunca foi a escola nem no quintal. Ela e as outras são dele. Os filhos delas são dele, que é adepto da raça pura, essas coisas. A música alta abafava os gritos, os vizinhos nunca suspeitaram de nada. Essa moças e seus filhos não existem, não foram registrados. Sempre fui bem pago pra ajudar seu tio. Não importa saber disso pois seu tio, que conheço melhor que vocês, vai deixá-los aqui pra sempre. Acorrentados aqui até a morte." O motorista deixou o porão, com o celular de Gustav. -"Tenho outro cadeado do porão, imbecil. Vão ficar trancados aí." Ele colocou o tapete pesado sobre a entrada do porão. Ouviu uma freada de carro. O motorista viu Wanda sair do carro. -"Gustav deve ter mandado algo pra ela." Duas viaturas policiais chegaram logo depois. -"Onde estão? Onde estão Gustav e Georg?" Wanda estava desesperada. Ela entrou na casa. -"Não sei, senhora Wanda. Cheguei agora e vi a casa aberta. Procurei por eles e nada." Os policiais entraram, armados. Wanda procurou pelo motorista mas não o encontrou. Um policial chamou os bombeiros. O motorista chegou ao hospital, vinte minutos depois. Ele entrou por uma porta lateral e se misturou aos enfermeiros. -"Estou com um paciente transferido. Preciso de autorização." Disfarçou quando um atendente o interpelou. Os quartos. Sabia que Dimitri estava na ala dez, quarto setenta e seis. O velho estava dormindo, ligado ao soro. O motorista o chacoalhou. -"Dom Dimitri? Acorda. George, David e Jane estão no porão! Eu os amarrei. Não vão encontrá-los. " O velho abriu os olhos. -"Hanna! Eles viram?" Sussurrou. O motorista meneou a cabeça, afirmativamente. -"O senhor vai voltar e vai ficar tudo bem. Que morram no porão, Dom Dimitri." O velho fez sinal de arminha na sua cabeça. -"Acabou! Não podem me pegar." O motorista entendeu o recado e sacou a arma. O sistema de som do hospital quebrou o silêncio. -"Atenção, emergência na ala dez, quarto sete dois. Há um intruso no quarto." Dimitri deixou a lágrima escorrer. O motorista visualizou a câmera de monitoramento perto da tevê. Ele atirou na cabeça de seu patrão e em seguida na sua, sem hesitar. Os bombeiros vasculharam a casa de Dimitri. Ao tirarem os tapetes da casa, o porão foi descoberto. Quebrado o cadeado, policiais e bombeiros entraram no porão do terror. Libertados finalmente, George, Jane e Gustav explicaram tudo a Wanda e aos policiais. -"São filhas de meu tio. Todos eles viviam nesse porão há décadas. É um monstro incestuoso e cruel." Resumiu George a polícia. As ambulâncias chegaram com as equipes de tevê. Temendo por sua vida e dos outros, Wanda tinha colocado o vídeo do porão nas redes sociais. A notícia da morte de Dimitri chegou através dos rádios das viaturas em frente a casa. George Gustav, com a ajuda dos policiais cobriram as cabeças das vítimas com seus casacos, pra não serem filmados e também por ser a primeira vez que viam a luz do sol. A cidade, o país, o mundo horrorizado com a notícia. Dimitri, o monstro do porão de Amberville. Um choque para quem o conhecia e admirava. Hanna e os outros foram acolhidos e cuidados por George e David. Meses depois, após intensa ajuda e tratamentos, Hanna confidenciou a George que ouviu, há muito tempo, uma conversa de Dimitri com seu motorista em que o velho falava que Dinah estava no porão. Escavações no porão encontraram ossadas, que identificaram ser de Dinah. Havia furos de balas no crânio da primeira esposa do monstro do porão. Provavelmente, Dimitri tinha se livrado da primeira esposa pra se unir a Ana Claire, já que o divórcio seria mal visto pela igreja. Cancelados nas redes, seu nome e de sua esposa Ana Claire, foram retirados de ruas, praças e locais. Suas medalhas e honrarias foram retiradas. George e Hanna herdaram e decidiram demolir a casa de Dimitri. O terreno e tudo mais foi doado a instituições de caridade. -"Vão mesmo pro Hawaii?" Hanna sorriu e entrou no avião. -"Será melhor ficar longe daqui, George. Vamos mandar notícias." George, Jane, David e Wanda observaram Hanna, Glória, Vitória, Jonny e Donald entrarem no avião, rumo a uma nova vida. FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 12/05/2023
Reeditado em 14/05/2023
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