A luz e as trevas

 

A LUZ E AS TREVAS

 

 

Miguel Carqueija

 

 

 

O Necronomicon! O Necronomicon! Essa palavra maldita me persegue dia e noite, semana após semana, desde aquele dia fatídico, não tão distante, em que entrei naquela estranha e sombria loja. A livraria era estreita e mal iluminada, além de comprida; cheirava a mofo, a coisas velhas e esquecidas; parecia um atavismo de eras obscuras e malignas. Era um tempo em que eu, afastado da casa de meus pais e levado talvez pelo “prurido de ouvir novidades” (como diria São Paulo) buscava saciar minha curiosidade pelo desconhecido e pelo fantasmagórico com todo o tipo de leituras exóticas, Daniken e por aí a fora. Foi nessa altura que um colega da faculdade deu-me a dica da Livraria Império, que ficava num dos escondidos becos do centro de Pedra Torta. Segundo esse colega, além de livros sobre a Atlântida e a Lemúria eu poderia encontrar também, em cópias xerográficas, o mais raro dos livros misteriosos – o tristemente célebre Necronomicon.

Eu pensava que só existia um exemplar daquela obra sinistra – o original, trancado a sete chaves na Universidade Miskatonic, em Arkham. O Rubens, porém, garantira-me que o livreiro Policarpo, dono da Império, estava promovendo, ainda que na surdina, uma democratização do Necronomicon. Para pessoas escolhidas a dedo, realmente interessadas no assunto.

Eu não sabia ao certo o que era o Necronomicon. Se realmente pudesse adivinhar juro que não o procuraria, não me deixaria enredar. Não podia, é certo, adivinhar ou acreditar que o contato com o Necronomicon equivalia a uma queda no abismo, ao extravio num labirinto de horror e loucura.

Meu encontro com Policarpo dera-se nas sombras dos fundos da livraria. O homem era um tipo estranho e atarracado, de sobrancelhas super-grossas e olhar finório, com uma barriga já meio pronunciada. Cobrara-me meio salário mínimo pela apostila de cópias xérox de alguma clandestina edição em português do livro. Eu duvidara a princípio da autenticidade daquilo. Ele porém mandou que eu sentasse e folheasse o volume. Assim o fiz e, em questão de dez minutos, já me sentia fascinado apesar do incômodo da leitura sob fraca iluminação. Nunca poderia ter esperado que o conteúdo daquele livro fosse tão aterrador e, ao mesmo tempo, tão aliciante. Embora evidentemente o local não fosse uma sala de leituras, mas de negócios, eu não conseguia parar de ler. Lá estavam estranhas alusões a seres macabros e primevos, de uma antiguidade inacreditável e de uma perversidade blasfema. Lá estavam os medonhos Shoggots, os estreliformes, os Mi-Go, o Grande Cthulhu, as Lesmas, a incrível Raça das Sombras. Algumas páginas do Necronomicon descortinavam todo um universo oculto e apavorante, de estranhas raças extraterrestres, provenientes até de outras dimensões, que teriam invadido a Terra a centenas de milhões de anos e, numa guerra cósmica, sido afinal expulsos e exilados. Raças que ainda viviam em algum local do contínuo espaço-tempo e que ainda cobiçavam a Terra e o Sistema Solar.

- São seres grandiosos – segredou-me o velho Policarpo, vendo-me assim fascinado. – Sabia que existe uma sociedade de admiradores destes seres?

Hoje percebo que ele usou, sagazmente, o termo “admiradores” em lugar de “seguidores” ou “adeptos”, como se fosse um inocente fã-clube dos Grandes Antigos. O fato é que saí de lá com um exemplar do Necronomicon, devidamente adquirido.

Em pouco tempo tornei-me um obcecado pelo livro maldito. Já não sabia viver sem ele. Era o meu livro de cabeceira, o meu alimento diário. Vivia e respirava o Necronomicon. Era uma obra tão bem escrita, apesar de suas abominações, que eu não compreendia porque o seu autor, Abdul Al-Hazred, era considerado louco. Da simples leitura de curiosidade passei a brincar com os ritos mágicos que lá se encontram, os desenhos de pentagramas e círculos de poder, as invocações satânicas. Curiosamente, no meu trabalho, no estudo, nas relações sociais, eu não dava a entender o fogo que me consumia por dentro. Agia normalmente. A sós, no meu apartamento, eu era outro: esquecia vídeos e distrações e corria para o Necronomicon, sem me dar conta de estar já prisioneiro de um círculo infernal, que me levaria à loucura ou à danação. A imagem apocalíptica de uma “besta que subiu do mar” parecia-me agora uma alusão ao Grande Cthulhu que, da submergida R’lieh, vigiava a desprevenida humanidade. O mais grave, porém, é que a cada dia que se passava eu mais próximo chegava de aderir aos Grandes Antigos, de adorá-los como se divindades fossem, e não simples criaturas ou mitos.

Planejara retornar à livraria e assim o fiz, um belo dia. Conversei com Policarpo, indaguei onde poderia encontrar os tais “admiradores” do Necronomicon. A resposta de Policarpo foi enigmática:

- Eles fazem reuniões discretas... dê-me o seu telefone e eu o aviso quando houver uma. Você virá aqui e nós iremos juntos.

- Não pode me dizer onde é?

- Só quando você confirmar sua presença. Nós fazemos tudo com discrição. É que tudo isso envolve um projeto muito grandioso, ao qual devemos obedecer. Você nem faz idéia de como tudo é grandioso.

Deixei o meu telefone e retornei ao meu apartamento. Aturdido, perturbado pela constante leitura daquele livro tenebroso, tomei um tranquilizante e caí na cama. Dormi durante horas.

Acordei lá pelas tantas, sobressaltado, e enxerguei uma silhueta junto à janela, folheando um livro na estante de leitura que eu ali mantinha com um pequeno quebra-luz. Apesar da pouca iluminação, percebi que se tratava de uma mulher jovem.

Saltei da cama espantado, em pijamas, e dirigi-me a ela:

- Quem é você? O que quer aqui?

Ela voltou-se para mim:

- Acalme-se, Julio. Você está cometendo uma temeridade. Não pode ficar lendo esse livro sem grave risco para sua saúde física e mental. Mesmo sendo xérox. Deixe-me levá-lo que eu sei o que fazer com ele.

Em circunstâncias normais eu teria segurado a garota e chamado a polícia, denunciando-a por invasão de domicílio. Mas segura-la como se aqueles olhos, aparentemente luminosos, me inibiam de qualquer ação? Eu poderia jurar que ela era uma hipnotizadora; não conseguia me decidir por uma ação física e nem desviar os meus olhos dos seus.

Sob a fraca luz do satélite eu podia perceber que a mulher era ruiva, de cabelos longos, magra e alta, verdadeiramente bonita. Mas no centro de tudo estavam os olhos, negros e enigmáticos, que pareciam as sentinelas avançadas de um poder interior. Seria uma bruxa? Eu jamais acreditara em tal coisa, mas agora o meu ceticismo vacilava.

- O livro é meu – balbuciei com dificuldade. – Não o darei a ninguém.

- Ele o destruirá. Você não tem defesa contra essa coisa. Entretanto, para mim será útil. Se esta cópia for autêntica, este é o texto do volume I do Necronomicon, que eu ainda não pude ler. E tudo indica que é autêntica. Eu sei das precauções que devo tomar. Você, não. Você é uma criança perto disso.

No mais íntimo do meu ser eu dava razão a ela. Na superfície, porém, recusava-me a abandonar a hediondez. Queria porque queria o Necronomicon e queria juntar-me aos seus aficionados. Hoje sei que não estava senhor de mim, que uma influência estranha e maligna estava me revirando pelo avesso. Assim, tentei mais uma vez avançar sobre a garota e retomar o meu livro. Só Deus sabe o que, naquela hora, eu teria feito com ela. Mas como fazer, se a insólita paralisia continuava? Então aquela espécie de mulher-Mandrake tirou uma corda do bolso da calça, segurou os meus braços e forçou-os para trás. Amarrou-me os pulsos sem olhar o que fazia, pois os seus olhos prosseguiam fixos nos meus, mantendo um encantamento de ofídio. Ela obrigou-me a sentar numa poltrona e só então desviou os olhos. Senti, pouco a pouco, que voltava a ter vontade própria. Ela sentou num banquinho de madeira que pôs diante de mim e iniciou uma explicação:

— O Necronomicon é o livro que, no mundo, maior mal causou. É, por assim dizer, o catecismo dos bruxos, de todos aqueles que servem às forças obscuras do passado. Hoje em dia pouca gente o leu, e aquele livreiro vem fazendo justamente a sua democratização, a democratização do horror. Ao longo dos séculos desenvolveu-se uma seita – ou talvez sejam várias – de seguidores do Grande Cthulhu e outras supostas divindades antediluvianas. É por isso que eu estou aqui. Entenda, Julio, que essa seita realiza até sacrifícios de crianças. Somem crianças no Brasil e no mundo, por que? Uma parte da resposta está aqui – nesse texto infame.

- Quem é você? – insisti, aflitivamente.

- Não posso lhe dizer o meu nome ou outros dados pessoais. Mas, se você me quiser chamar por um nome, chame-me a “Pesquisadora dos Arcanos”.

- Mas e a livraria?

- Não pense mais nela. Não volte lá.

Ela sorriu e se aproximou da janela, por onde tinha entrado, como se fosse Peter Pan:

- Desculpe o mau jeito. Quando você se livrar da corda eu estarei longe. E você, assim espero, livre dessa influência nefasta. Se eu fosse você iria numa igreja, não vá ter uma recaída.

Assim dizendo ela saiu pela janela. Apressei-me em chegar lá para olhar, embora ainda estivesse manietado. Por aqueles telhadinhos próximos, porém, ela já se sumira. Talvez houvesse descido por uma calha, mas o fato é que desaparecera.

Senti-me repentinamente livre de um fardo pesadíssimo. Recuperara, ao que parecia, a sensibilidade, e a leitura do Necronomicon agora só me causava horror. Abençoei a garota por tê-lo roubado de mim; mas temi por ela. E a livraria do Policarpo, aquela semente malévola irradiando as abominações dos seres antigos? Por que a garota me dissera para não pensar mais na livraria?

Dois dias depois eu tive a resposta. A televisão e depois o jornal noticiaram o incêndio da Livraria Império, um esquisito incêndio que poupara os prédios vizinhos. Não poupou, porém, o próprio livreiro que, assim, jamais cumpriu a promessa de me telefonar e me transmitir os endereços dos seguidores dos Grandes Antigos. Até hoje tremo só de pensar nisso. Se não fosse aquela jovem, que surgiu do nada e a ele retornou, em que voragem eu estaria mergulhado? Em que inferno teria caído?

 

 

NOTA: A Pesquisadora dos Arcanos (Valquíria Cruz) é uma personagem misteriosa que criei na década de 1990 para contos lovecraftianos passados no Brasil, mas que não foi suficientemente desenvolvida. Este conto é um dos poucos que produzi com ela.

H.P. Lovecraft (1890-1937) é um famoso escritor norte-americano que produziu um grande número de contos e novelas de terror, num estilo elegante. Ele criou os Mitos de Cthulhu, onde é sempre mencionado o misterioso e fictício livro "Necronomicon". Entretanto os textos de Lovecraft são fatalistas e os seres malignos conhecidos como os Grandes Antigos são vistos como invencíveis. Nos meus trabalhos lovecraftianos eu coloco personagens capazes de enfrentar o mal.

Imagem: Pinterest

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 21/01/2023
Reeditado em 21/01/2023
Código do texto: T7700642
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