FLAGELAÇÃO

...

Tântalo estava perdido. Nem mesmo as luzes do céu serviam de referência ou auxiliavam sua memória. Aquele emaranhado de ramos espinhosos a seus pés era conhecido. Tântalo, apesar de não recear a morte, sentia medo do que viria após se descobrir, invariavelmente, jogado nesse local. Ele podia ouvir as vozes lhe chamando ao longe. De olhos fechados, antes mesmo do impacto, lembrava a dor excruciante do látego impiedoso em suas costas.

- Salvai meu menino, Senhor – rogava a mãe sobressaltada na cama vazia ao ouvir os gritos, mas sem coragem de se opor.

Entre resmungos, meio xingamentos, meio confissões, o pai com a coberta dobrada sobre o lombo, pois era o mês frio de julho, observava o filho que um dia vira nascer e um dia vira cair em coma letárgico infinito com a alma raptada pelo inferno.

Por dois ou três instantes, pouco mais, pouco menos, o homem reparava o garoto se retorcendo na cama com os braços e pernas estirados como se amarrados por cordéis invisíveis que o prendiam de bruços sobre o colchão.

A chama da vela não lhe permitia enxergar todo o quadro de única vez, então via relances do sofrimento do filho. Ouvia as dores que escapuliam da boca como pregos arrancados da língua. Testemunhava as contorções violentas. E seus olhos de pai se enchiam de lágrimas sem conseguir impedir o sofrimento da carne de sua carne.

- Tântalo – implorava o homem – acorda, filho.

Inútil tentativa, ele já bem o sabia, sempre soube desde a primeira vez que esse tormento se iniciara quando fora também possuído pelo demônio e passara a açoitar a criança todas as noites até o sol enviar seus primeiros mensageiros e o libertava daquelas garras malignas.

Só então, Tântalo ficava em silêncio sobre o lençol encharcado de sangue e o homem se retirava para a lida diária pendurando o chicote no prego enferrujado ao lado da porta. Na cozinha, o desjejum preparado pela mulher com olhos chorosos o esperava. Não trocavam palavra. Ambos sabiam que tudo seria repetido na noite seguinte e seguinte na batalha entre os dois diabos encarnados nos corpos do pai e filho.

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 31/12/2022
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