SÓ SE MORRE UMA VEZ

...

Ninguém diria que Salete M. era bonita. Ela não era bonita, mas de alguma maneira bastante peculiar, Salete chamava a atenção por onde passasse. Isso lhe causou muitos problemas na adolescência e juventude, as outras garotas a odiavam, não havia um bom rapaz num raio de quilômetros que não quisesse sua atenção, o que era motivo sólido para inveja. Mesmo agora, entrada em décadas de vida, Salete continuava o centro da conversa, dizia-se mesmo que estava deslumbrante com a idade. Muitos homens rasgavam elogios abertos, alguns ainda fomentavam o plano de se casar com ela, apesar de Salete já ter enterrado três maridos. Isso não os assustava. Salete encantava e não fazia questão de esconder seu brilho. Sempre era possível encontrá-la na praça perto da escola secundária onde havia estudado há muitos anos. Usava vestidos floridos e sapatos de salto baixo. Levava consigo o mesmo livro todas as vezes e, sentada num dos bancos à sombra da frondosa árvore central, folheava as páginas com renovado sabor, mesmo quando dois ou mais sujeitos estivessem por perto conversando animadamente.

Depois do falecimento de seu último companheiro, Salete se viu com problemas para manter a grande casa onde morava sozinha. Nunca teve filhos, não por desejo próprio, mas por recusa da natureza . Talvez fosse esse o grande desapontamento de sua existência. E assim, como não pensava em se casar novamente ou mesmo arranjar um homem companheiro, Salete passou a contratar profissionais para providenciar os consertos e reparos necessários em sua residência. Sempre havia uma torneira a ser apertada, um chuveiro preguiçoso, aquela porta rangendo, serviços de marido que ela não conseguia resolver. E numa dessas contratações, salvo engano para ajustar as portas do armário da cozinha que insistiam em ficar abertas, Jean Pierre surgiu em sua varanda.

- A empresa me enviou, senhora - falou o jovem à guisa de cumprimento.

- Sim, claro. Entre, por favor, vou mostrar os armários, eles estão me deixando maluca - ela disse de uma vez só, surpresa com a sensação em seu estômago parecida com pequenas formigas subindo e descendo em seu ventre.

- Ok, vou só trancar o carro e buscar a caixa de ferramentas no carro, já volto - ele disse mostrando o sorriso tímido.

- Melhor pegar a caixa primeiro e trancar o carro depois - Salete brincou.

Jean Pierre encostou a mão na testa e apontou para ela concordando. Ela sorriu satisfeita e tonta. "Salete, Salete... você é uma velha, controle-se..." ela pensou enquanto vigiava o homem vir pelo gramado da casa num passo quase de dança.

- É essa porta aqui que faz mais barulho e me deixa enlouquecida - ela disse quando ambos estavam na cozinha.

- Tranquilo, dona. Vou apertar todas e a senhora não vai ouvir mais nada.

Nas próximas horas, o jovem fez tudo o que devia fazer com precisão e agilidade. Fez mais até do que combinado. Uma manutenção geral, como dizem, sob os olhos atentos de Salete que servia suco, água e petiscos ao menor sinal do rapaz. Há tempos ela não ria tão alegremente ouvindo as estórias de Jean Pierre. Ele era divertido e sabia entreter sem despregar o olho do serviço. Praticamente, desfiou sua vida para a senhora simpática que lhe dava tanta consideração. Depois de uma pequena pausa para o lanche, já à vontade, Jean Pierre comentou:

- Quando me mandaram para o serviço da senhora, d. Salete ...

- Salete, Jean, pode me chamar só de Salete, não sou dona de ninguém, pelo menos, não mais - disse com leve risinho envergonhado.

- Tudo bem, Salete. Então... quando me mandaram para cá, avisaram que você morava sozinha , não que isso faça diferença para mim, mas não entendi, geralmente, as pessoas dizem que NÃO moram sozinhas, que logo alguém vai chegar e tal.

Foi a vez de Salete não entender. "Eu moro sozinha", ela disse.

- Ah tá ... São seus amigos ou parentes então. Tudo bem. Eu devia ter adivinhado, mas sou meio lento para essas coisas, minhas professoras sempre diziam - ele finalizou em tom conciliatório e se levantou para o trabalho.

Um arrepio gigantesco se apossou da senhora Salete. Os mínimos pêlos de seu corpo se levantaram para espiar. A boca foi tomada por uma secura de deserto e os olhos se abriram como se não fossem fechar jamais. Mesmo sentada, sentiu as pernas desabarem. O ambiente da sala de estar se fechou e as paredes pareceram se convergir num túnel. Ela emudeceu totalmente. "De novo, não", ela implorou.

Ainda enfraquecida, Salete forjou sua vontade e se levantou em direção ao cômodo onde Jean Pierre trabalhava. Encontrou-o parafusando as pernas da velha cama e assobiando uma canção famosa com surpreendente afinação. Passou os olhos pelo restante do quarto e nada viu de alarmante. "Talvez ele tenha se enganado".

- Jean Pierre - ela chamou com voz meio trêmula.

- Sim ... - ele principiou a responder, mas ao notar a palidez da senhora mudou a frase e se ergueu - a senhora está se sentindo bem, Salete?

- Estou sim, Jean, só uma tonturinha leve, coisa de gente velha, logo passa.

- Você não é velha, Salete, longe disso, senta aqui para descansar um pouco, vou buscar um pouco de água.

A preocupação do rapaz fez as formigas correrem outra vez no ventre dela.

- Obrigada, Jean, não precisa. Só queria perguntar uma coisa.

- Pois pergunte, Salete, se souber responder é na hora, mas já adianto que não sei muita coisa - e sorriu sinceramente.

Aquilo fez o coração de Salete se apertar mais ainda com receio da resposta. Mesmo assim, indagou:

- Por que você concluiu que não moro sozinha ou que estou com amigos em casa?

"Que pergunta estranha", Jean Pierre disse para si mesmo enquanto olhava para a porta do quarto um tanto confuso, principalmente porque Salete acompanhou seu olhar e pareceu mais branca ainda.

- Jean, responda, por favor - ela insistiu.

- Ora, Salete ... não sei se você está brincando, mas a resposta é meio que óbvia, né? - falou e apontou para a entrada às costas dela.

Salete despejou um longo e sonoro suspiro preenchendo o silêncio da casa. O sol encaminhava-se para o repouso empurrado pela brisa de outono que também balançava as cortinas da janela aberta. O aroma vindo das ruas era suave, indício de que a noite seria agradável. Ela relutava em olhar para onde o rapaz indicava até que disse em voz baixa e bastante nervosa:

- Jean, preciso que você vá embora agora, por favor.

- Ok, Salete, vou só terminar essa parte aqui e pronto... estará tudo perfeito - ele afirmou meio surpreso.

- Não, Jean, vá agora... saia por essa janela e vá embora, pelo amor de Deus, vá agora - dessa vez, Salete alterou o volume de voz e parecia realmente alarmada.

- Salete, não estou entendendo...

- Não precisa entender, só vá embora, rápido.... se eles se mostrarem para mim, acabou seu tempo, vá logo, vá logo...

Jean Pierre analisou a situação. Ela está velha, talvez tenha aquela doença com nome esquisito, vai saber. A fatura vem pela empresa, não é preciso receber nada. Ok, vou embora, mas pela janela não.

- Tá bom, Salete, estou indo... vou pegar o restante das ferramentas lá embaixo...

- Amanhã eu levo para você, pode ir... vá pela janela.

- A senhora me desculpe, mas pela janela não, estamos no andar de cima, não tem sentido nenhum, estou indo. Espero que seus amigos conversem com a senhora para entender tudo isso. Até mais. Olha só, eles trouxeram minha caixa.

Salete enfim se virou para a porta do quarto. Ao enxergá-los, deu um grito horrível levando a mão ao peito e caiu no assoalho com barulho pesado. O jovem ainda tentou apará-la na queda, mas não conseguiu. Ela respirava com dificuldade e seus olhos verdes estavam escancarados olhando por sobre os ombros de Jean.

- Deixem-no em paz ... - ela conseguiu dizer baixinho - não o levem, eu vou...

- Chamem a ambulância, liguem para a emergência - Jean Pierre bradou enquanto massageava o peito da senhora e colocava a cabeça em seu colo - O que estão esperando? Corram ... - falava atônito com as três figuras no quarto que assistiam tudo de maneira silenciosa. Havia raiva nos semblantes daqueles homens. Depois de voltar a atenção para Salete que principiou a se debater, Jean Pierre voltou a falar com os homens que, para seu espanto haviam saído sem dizer palavra.

- Covardes - ele vociferou a plenos pulmões - canalhas.

Jean Pierre foi até à janela e gritou para um casal que passava na calçada por ajuda. Depois de um tempo considerável, Salete foi levada para o hospital de onde não saiu jamais.

Após o velório, onde, praticamente, toda a cidade compareceu e onde se ouviram as mais estranhas estórias, boatos e lendas sobre o magnetismo poderoso da falecida com alguns sorrisos maldosos das invejosas e desalentos perdidos de muitos amores platônicos, Jean Pierre ainda pensava nas pessoas na casa que negaram ajuda, apesar de estarem presentes o tempo todo observando ele e Salete, mesmo que em total silêncio e sempre à distância, coisa que o deixara constrangido, mas não era pago para fazer perguntas e se a dona da casa não se importava, tudo bem. Porém, as últimas palavras dita pela mulher em seus ouvidos não o deixavam em paz:

- Eles não o perdoarão, fuja dessa casa, não vá ao cemitério. Hoje, livrei você, mas só se morre uma vez.

FIM

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 17/06/2022
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