CONTOS DE OUTONO/INVERNO. O VIGILANTE E O CEMITÉRIO AMALDIÇOADO.

Sandoval vestiu as luvas e a touca de lã que a esposa Cremilda tinha colocado na mochila. A garrafa de café na mesa da guarita. Janelas e porta da guarita fechadas. O vento frio entrava por baixo da porta. A cadeira, a mesa, o rádio ligado. A bicicleta vermelha do lado de fora da guarita. -"Caraca. Seis graus." Olhou para o posto de gasolina em construção, a dez metros dali. Um cemitério abandonado ao lado. As árvores dançavam com o vento, que assobiava alto uma cantiga de dor e lamento. -"Medo do cão. Sozinho nesse fim de mundo. Soubesse que o serviço era do lado do cemitério antigo nem tinha aceitado. Tá certo que preciso do emprego. Um ano parado, essa pandemia, os meninos querendo as coisas, a Nutella valendo mais ouro. A geladeira vazia, a Cremilda precisando de fogão e máquina de lavar novos. Tudo caro, meu Deus. Tenho que agradecer esse emprego, caiu do céu. Esse menino que eu rendi, falou que não parava ninguém nesse emprego a noite. Será porquê? Tranquilo até demais, não tem pra fazer, uai." Falava consigo mesmo. Arrependeu-se de ter aceitado o emprego de vigilante noturno. -"Achou que era fácil, Sandoval? Não entendi porquê o supervisor foi embora assim que anoiteceu? Devia ter mais o que fazer. Falou que um tal de Gerônimo trabalhou aqui por quatro anos, era o único que não tinha medo de ficar só a noite. Que fome. Cremilda colocou macarrão na marmita e banana na mochila. Essa mulher vale ouro." O relógio marcou meia noite. Sandoval se virou. Um barulho vinha do cemitério. Agarrou a lanterna e pegou o rádio amador. Lembrou que o supervisor tinha dito que o rádio estava quebrado. -"Pra ajudar, meu celular descarregou e não trouxe o carregador. Se for ladrão, estou na roça." Abriu a porta e acendeu a luz de fora. O banheiro dos funcionários da empreiteira ficava num contêiner, a cem metros dali, no canteiro de obras. -"Deve ser alguém usando o banheiro." O barulho de ferro batendo. Vozes. Sandoval se arrepiou. -"Tem gente aí?!? Já chamei a polícia, einh." Gritou. A lanterna acesa. A camisa laranja com ombreiras verdes e bolsos cinza. O logotipo da empresa de segurança era uma águia com uma cobra no bico. -"Eita uniforme feio. Parece alegoria da Portela. Ainda bem que fico sozinho." Sandoval deu uma geral no posto em obras. As vozes vinham do cemitério. Ele entrou no local. Cinco pessoas rodeavam um túmulo. -"Turma, nada de roubar sepultura. Já chamei a polícia." Mentiu. Uma das pessoas se virou e gritou. -"Bayakzak heidem liberath, Kassss." Sandoval nada entendeu. Sandoval mirou a lanterna e viu que eram zumbis, tinham as roupas rasgadas e cheiravam mal. Os demais se viraram e revelaram os rostos com olhos e peles caindo. Eles vieram na direção de Sandoval, andando devagar e soltando pedaços de peles. Sandoval se benzeu. Dos outros túmulos começaram a sair caveiras. -"Credo em cruz, valhei -me Santa Rita." Sandoval largou a lanterna e correu para a guarita. Trancou a porta e apagou a luz. -"Estou perdido." Os zumbis e as caveiras cercaram a guarita. Uma chuva fina começou a cair. Eles batiam nas janelas e socavam a porta. -"Aí, meu Pai Eterno, me ajuda." A luz da guarita acendeu sozinha. -"Calma, moço. Eles vão embora." Sandoval se virou e viu um velho numa cadeira. -"Quem é o senhor? Como entrou aqui?" Sandoval reparou que o homem tinha uma camisa igual a dele. O velho sorriu. -"Sou Gerônimo, moro aqui do lado, depois da rodovia. " Sandoval ficou aliviado. Os zumbis e caveiras estavam lá fora mas tinham parado de bater nas janelas e na porta. -"Vão embora, vade retro. Ele é apenas o novo vigia do posto. É amigo." Sandoval estava tremendo e tinha molhado a calça. -"É! Isso mesmo, sou o novo vigia do posto." Gritou. -"Eu vi a luz da guarita acesa. Escutei os barulhos no cemitério. Um conselho, não entre no cemitério. Nunca. Fique aqui pois você é o vigia do posto e não do cemitério, entendeu?" Sandoval fez sinal de positivo com o polegar. -"Entendi. Eu sou apenas o vigilante do posto. Não irei mais ao cemitério." Geronimo cumprimentou Sandoval. Geronimo deu um tapinha no ombro de Sandoval e abriu a porta da guarita. -"Viu? Já foram embora. Bom trabalho, colega." Sandoval olhou o homem ir embora, indo na direção da rodovia. Aliviado, ele trancou a porta e começou a ler os salmos de uma bíblia que ficava na guarita. Assustou com um um chute nas botinas. -"Acorda, rapaz. Quase seis horas." Sandoval esfregou os olhos. Um rapaz novo a sua frente. O uniforme da empresa de segurança. -"Bom dia. Sou Alfred. Trabalho aqui durante o dia." Sandoval se levantou. -"Bom dia. Sou Sandoval. Que frio." Alfred conferiu os itens da guarita e os cartões de ponto. -"Traga coberta a noite. Tem um poncho atrás da porta, é bem quente. Pode usar. Era do meu tio Geronimo." Sandoval se arrepiou. -"Sério?! O supervisor falou dele, que trabalhou aqui. Ele esteve aqui comigo e me ajudou a me livrar das criaturas, zumbis e caveiras, do cemitério." Alfred riu. -"Meu tio? Ele morreu faz dois meses, atropelado na rodovia. O senhor jura que falou com ele? Dizem que o cemitério é mau assombrado mas é mentira. Não tem zumbis, meu amigo." Sandoval se benzeu. -"Credo em cruz, sonhei legal. Bom trabalho." Ele se despediu e pegou a bicicleta. Passou ao lado do posto, indo na direção da rodovia. -"Melhor ir embora pelo acostamento. Eu, einh?! E nem vou passar perto desse cemitério." Sandoval, mais tarde, contou o fato a esposa. -"Foi um pesadelo, um aviso, Sandoval. É pra você ficar na guarita. Você é guarda do posto e não do cemitério." Sandoval concordou. -"Pensei em ir na firma devolver o uniforme e desistir desse emprego." A esposa foi categórica. -"Desistir nada. Vai seguir o conselho do sonho e ficar na guarita. Só isso." Tão logo o sol nasceu, Alfred fez uma ronda pelo canteiro de obras. -"Estranho. Esses passos na lama saem do cemitério e vão na direção da guarita. Deve ter sido o vigia da noite " FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 22/05/2022
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